Jorge Manuel Lopes

A conta que Abdullah Ibrahim fez


Crítica musical, por Jorge Manuel Lopes.

À volta do jazz, o tempo parece ter uma forma distinta de correr, polvilhando os seus criadores com alento criativo e/ou físico até idades avançadas. Aos 82 anos, o guitarrista britânico John McLaughlin não dá sinais de abrandamento da atividade. Nos Estados Unidos, Herbie Hancock e Lonnie Liston Smith continuam em redor dos teclados aos 83, e Charles Lloyd (saxofone e flauta, 85 anos) vai lançando discos. Entre os nonagenários, o produtor e arranjador Quincy Jones (90) faz aparições esporádicas, e a cantora e pianista Sheila Jordan (95) ainda sobe ao palco. Candeia que vai à frente, o saxofonista Marshall Allen mantém-se ao leme da Sun Ra Arkestra, preparando-se para celebrar os 100 anos de vida a 25 de maio.

Centelha criativa e agilidade é o que não falta a Abdullah Ibrahim. O (sobretudo) pianista e compositor sul-africano começou por empregar o nome artístico Dollar Brand, cresceu e deu os passos iniciais na música no caldo cosmopolita da Cidade do Cabo. O apartheid conduziu-o para longe em 1962, primeiro para a Suíça, depois Estados Unidos. Numa das periódicas incursões à terra-mãe, Brand converteu-se ao islamismo e adotou o nome que ainda usa. Regressou em definitivo no início dos anos 1990, celebrando a libertação e eleição de Nelson Mandela. Leva uns viçosos 89 anos neste Planeta.

A mais recente proeza em disco de Abdullah Ibrahim intitula-se “3” (Gearbox/Popstock), gravado no palco do Barbican Hall, em Londres, a 15 de julho de 2023, com um trio em que Cleave Guyton Jr. cuida da flauta e do piccolo, e Noah Jackson do contrabaixo e violoncelo. Um primeiro bloco de seis breves peças de filigrana foi captado com a sala deserta, dedicando-se o registo restante a documentar o concerto dessa noite. Por toda a parte, composições fundadas em melodia, delicadeza, respiração pausada, alta definição no sopro e no pressionar de teclas e cordas, comunicação telepática do trio. “Mindif”, um clássico de Ibrahim, escutado na banda sonora de “Chocolat” (1988) e aqui servido em três configurações despojadas, é um tratado de melancolia e lirismo. Música com vida, de uma vida longa. lm