A bondade dos ditadores
Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.
Há pessoas más que seriam menos perigosas se não tivessem nenhuma bondade. A frase é de François de La Rochefoucauld, pensador moralista francês do século XVII que deixou ao mundo duas obras literárias, uma de memórias e outra de máximas e reflexões morais. Na primeira, relata as intrigas da corte francesa e na segunda espelha o seu entendimento e consequente desencanto sobre o género humano. No seu tempo, a noção de ditador era uma realidade normal e vigente: o rei ordena, o povo acata. Pelo meio, o clero e a nobreza movem influências e trocam favores para ganharem poder, terras e riquezas de ordem vária. Os ricos vivem em palácios, os pobres em casebres, os ricos vivem de rendimentos, os pobres do trabalho mal pago. No século XVII a Europa é um continente atravessado por guerras e pestes. Manda quem pode, obedece quem deve. Do lado de dentro dos muros, há banquetes e bailes. Do lado de fora, fome, doenças e exploração. A maldade está em todo a parte, ela atravessa a condição humana.
No caso dos ditadores, a maldade é vista pelos próprios como uma forma de inteligência e serve para atingir fins que consideram dignos e legítimos. Curioso na personalidade de muitos é o facto de acreditarem que os atos ignóbeis que cometem se justificam em nome de um objetivo que consideram elevado. Hitler acreditava fanaticamente na superioridade da raça ariana e, para que esta triunfasse, exterminar os judeus era apenas uma etapa do processo. Estaline, ao longo de quase três décadas de terror totalitarista, foi responsável por 43 milhões de mortes. Como o próprio afirmou, uma única morte é uma tragédia, um milhão de mortes é uma estatística. Este monstro derretia-se com Svetlana, a sua filha mais nova, que tratava com carinho e a quem chamava “o meu pardalito”. Svetlana era a única capaz de impedir que ele batesse na mãe, implorando clemência e abraçando as suas botas de cano alto nos momentos de fúria.
Existem mil e uma “petites histoires” que nos mostram que os monstros responsáveis pelas grandes tragédias e matanças da Humanidade também tinham coração. À nossa escala mais branda, Salazar também se comovia quando a governanta Maria de Jesus e as empregadas de São Bento lhe narravam, em serões passados com manta sobre as pernas e as velhas botas várias vezes remendadas, as cenas do filme “Música no coração”.
Salazar foi ditador durante quatro décadas. Vamos com cinco décadas de democracia e, no entanto, o mito de um único líder que pode salvar a pátria e pôr ordem nisto tudo não só traz alento à população mais velha, como fascina os mais jovens. Um sinal de alerta para quem acredita que a democracia está segura.