Margarida Rebelo Pinto

A aprendizagem das despedidas


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

E se pudesse viajar no tempo, para onde iria? Voltaria à infância dourada, feita de alegrias, de abundância, de temporadas de férias de verão que pareciam não ter fim? Ou à travessia quase sempre dolorosa e solitária da adolescência? Regressaria diretamente ao último dia em que trabalhou numa empresa da qual foi despedido sem fundamento para dizer na cara do seu chefe tudo o que não teve coragem nesse dia negro? A pergunta que lanço é simples: se o pudesse fazer, escolheria revisitar os lugares e momentos em que foi feliz, ou os piores momentos que viveu, para alterar a realidade e sentir que, de alguma forma, a justiça foi feita e agora sim, pode resgatar a paz?

Acredito que o coração é uma máquina do tempo e quem o reprime está a atrasar a ordem natural das coisas. Falo das nossas coisas, aquelas que cada ser humano vive dentro de si mesmo, no silêncio da sua intimidade. Os medos, os traumas, os desejos, os sonhos. Aquele beijo que nunca demos a um amor platónico, uma carta que nunca enviámos ou um poema que não ousámos partilhar, o último abraço que nos escapou antes da derradeira partida de alguém que amávamos. Por vezes, a memória enche-se do que deixámos escapar. Outras, fica inundada de tudo o que poderíamos ter feito de forma diferente. As melhores memórias são aquelas que nos trazem paz e harmonia, quando nos lembramos de dias perfeitos, de amores felizes, de amizades eternas, de pessoas que ajudaram a tornar o nosso mundo melhor.

Quando o meu pai partiu, fiquei por alguns minutos sozinha no quarto, perante o seu corpo já rígido e frio, estendido na cama. Permaneci em silêncio, sem perceber o que estava a acontecer, porque a morte de alguém que amamos começa sempre por ser uma incredulidade. Sabia que esse momento não mais seria revisitado, ao contrário de tantos outros que o meu coração, essa máquina do tempo que é a mais poderosa do mundo, vai lembrando, e trazendo, com as memórias, todas as emoções que com ele e graças a ele vivi. Contudo, os minutos que passei a contemplar a sua última imagem serviram-me para aceitar a sua partida definitiva.

Talvez uma das formas de sarar o coração seja a aprendizagem das despedidas. Aceitar que tudo é temporário e passageiro e que tudo tem um fim. Os rituais de despedida libertam-nos para uma existência mais focada do presente, por isso é tão importante dizer adeus a um pai, a um sonho, a um trabalho ao qual demos tudo, a uma desilusão de amor. E se a vida não nos deu a oportunidade de o fazermos, podemos encenar no maravilhoso e infinito universo que é na nossa imaginação esse momento tão crucial para que a nossa vida siga em diante. De outra forma, corremos o risco de alojar um relógio de cuco no coração que pode saltar a qualquer momento, provocando danos inesperados. Pessoa escreveu, “o coração, se pudesse pensar, pararia”. O poeta sentia que o coração lhe doía como um corpo estranho, enquanto o cérebro dormia tudo quanto sentia. O cérebro, essa máquina sobrevalorizada pelos racionalistas, não possui a alquimia de nos aliviar da tristeza, pois não existe nenhum pensamento que apague um sentimento. Estamos curados quando, ao revisitarmos o passado, conseguimos revivê-lo sem o sentimento inerente. Dizer adeus também é uma forma de ganhar anos de vida, porque o tempo pode ser apenas um ponteiro que não aponta nada, ou pode ser aquilo que fazemos com ele.