Uma doença silenciosa que afeta sobretudo mulheres

Os principais sintomas são: cansaço anormal e generalizado, comichão difusa pelo corpo que pode ser extrema ao ponto de impedir o descanso, manchas de hiperpigmentação na pele ou xantomas

A colangite biliar primária, problema crónico que atinge o fígado, é diagnosticada em fases cada vez mais precoces graças às análises de rotina. Porém, pode ser assintomática e quando há sintomas eles nem sempre são claros para o doente. Há um alerta que importa: a patologia pode progredir até à cirrose e obrigar a um transplante.

Comecemos pelo princípio, por perceber o que é esta doença, a colangite biliar primária, que é autoimune, crónica e progressiva. “O fígado produz bílis e neste órgão temos canais biliares que conduzem a bílis até à vesícula biliar, que depois se esvazia no intestino no sentido de ajudar a digestão. No fundo, o que acontece nesta doença é uma destruição desses canais biliares dentro do fígado, comprometendo a drenagem da bílis até ao intestino”, resume Pedro Narra Figueiredo, presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia. De forma simples, os canais biliares vão ficando, progressivamente, obstruídos, não permitindo a passagem da bílis e isso acaba por ter consequências ao nível do fígado.

É este, afinal, o principal órgão afetado pela colangite biliar primária. Isto porque se gera um processo inflamatório, que evolui ao longo de vários anos, provoca cicatrizes no fígado e acaba por levar a um estágio final de cirrose. Embora popularmente se associe muito a cirrose ao alcoolismo, a verdade é que esta é a fase terminal de todas as doenças que envolvem o fígado e este caso não é exceção. A título de curiosidade, a colangite biliar primária era designada no passado por cirrose biliar primária, sobretudo porque, nas últimas décadas, a doença era diagnosticada numa fase tardia, algo que já não é assim tão frequente – lá iremos.

Palmira Simões, 64 anos, não tem memória do ano exato em que recebeu o diagnóstico. Mas ouviu a notícia, assegura, há pelo menos uma década. “Na verdade, nunca tive sintomas, talvez algum cansaço anormal. Fui ao médico de família por outras razões e numas análises de rotina detetaram-se umas alterações. Aí fui encaminhada para uma consulta de gastrenterologia no hospital”, conta. Foi nessa consulta que ficou a saber que sofre de colangite biliar primária e que terá de tomar medicação para o resto da vida. “O médico explicou-me o que é esta doença, que teria de aprender a viver com ela, que não tem cura e que tenho de ser vigiada. Claro que fiquei assustada”, relata. Embora não tenha cura, a medicação permitiu-lhe controlar a evolução. “Nesta fase, não me limita. A única coisa a que tenho de estar atenta é ao meu peso, porque tenho muitas variações de peso e a dose da medicação vai mudando consoante o peso”, comenta, hoje, já mais conformada.

Os casos assintomáticos são comuns, aliás, segundo David Perdigoto, gastrenterologista no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, “atualmente cerca de metade dos casos são detetados em fase assintomática em análises de rotina, ou seja, a pessoa faz análises por outro motivo e é detetada uma alteração no marcador da enzima hepática, que leva a um estudo complementar e consequentemente à identificação da doença”. E este é um ponto importante, já que mostra que a doença pode ser silenciosa e revela o papel que os cuidados de saúde primários têm na deteção em fase precoce. “Temos notado que tem havido um aumento do número de diagnósticos porque há uma consciencialização maior nos cuidados de saúde primários para pedir análises orientadas para o fígado nas chamadas análises de rotina, que é um órgão um bocadinho esquecido, independentemente do aparecimento de sintomas”, refere Pedro Narra Figueiredo. E aqui, ressalva, “é preciso chamar a atenção que esta é uma doença predominantemente de mulheres”, pois 90% dos doentes são do sexo feminino. “A Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia tem vindo a alertar para isto. Se aparece uma doente mulher entre os 40 e os 60 anos, com queixas de fadiga anormal, um cansaço injustificado, e um quadro de prurido, comichão, é esta a doença que deve ser suspeitada. Este é o quadro típico.”

Os sintomas e o tratamento que dá esperança

O cansaço anormal e generalizado, que afeta as tarefas do dia a dia, e a comichão difusa pelo corpo, que aparece com mais intensidade à noite (em alguns casos é um prurido extremo que impede o descanso e que é intratável), são os sintomas mais comuns que começam a surgir. Mas há outros mais fáceis de identificar que podem acontecer com a progressão da patologia. “São sinais mais objetivos, nomeadamente manchas de hiperpigmentação na pele ou xantomas, que são elevações de cor amarelada na pele, devido à acumulação de colesterol. A doença centra-se no fígado, mas tem uma manifestação sistémica, uma dessas manifestações é a acumulação de colesterol”, esclarece David Perdigoto. Depois, numa fase muito avançada, quando existe já uma cirrose estabelecida, os sintomas são os típicos da doença hepática terminal, “e são a icterícia, isto é, a coloração amarelada no olho e na pele, alterações do estado de consciência, a acumulação de líquido na barriga, hemorragia por varizes que se desenvolvem no esófago e ocasionalmente no estômago”.

A boa notícia é que há ferramentas terapêuticas com grandes resultados. “Há um fármaco crucial, que altera a história natural da doença. Quer isto dizer que, se for detetada na fase precoce, com este medicamento conseguimos evitar que avance para a fase de cirrose, trava o avanço da doença”, vinca Perdigoto. Mais recentemente surgiu um outro fármaco para os doentes que não respondem à primeira opção terapêutica. E há ainda uma terceira alternativa para casos menos frequentes que não respondem ao primeiro medicamento e que têm contraindicação para o segundo. E, claro, no fim da linha está o transplante de fígado para os casos de cirrose descompensada. “Mas é preciso explicar que o transplante é substituir uma doença por outra, porque o doente continua a ter de ser acompanhado no hospital. E às vezes a doença reaparece no fígado transplantado anos mais tarde. O ideal é não chegar à fase de cirrose”, avisa Pedro Narra Figueiredo.

Não é possível prevenir a colangite biliar primária, que não tem uma causa identificada, em medicina nem sempre é fácil chegar ao busílis da questão. Mas há algumas pistas. Segundo David Perdigoto terá uma componente genética, no sentido em que há uma maior predisposição, um maior risco se houver histórico familiar. Já o presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia sugere que “há algumas infeções no organismo, por exemplo urinárias, que podem estar associadas ao aparecimento da doença, os hábitos tabágicos também, mas dizer que ela acontece por causa disto especificamente não é possível”.

Estima-se que existam cerca de mil doentes em Portugal, nove em cada dez são mulheres em idade média. E sabe-se que é uma doença que se pode controlar. Sendo certo que o caminho para um diagnóstico atempado é realizar regularmente análises de rotina que contemplem o fígado.