Margarida Rebelo Pinto

Pequena dor à portuguesa


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Tomem atenção à voz dos poetas, pois eles são os profetas no novo mundo. O belíssimo discurso em forma de poema de A Garota Não, na Gala dos Globos de Ouro, dizendo tanto em tão poucas palavras, confirmou o seu talento, sensibilidade e inteligência. Encantei-me musicalmente com ela quando descobri uma das suas músicas. Chama-se No Dia do Teu Casamento e tem das letras mais bonitas que ouvi nos últimos anos. Em períodos de crise política, económica e social, a voz dos artistas é fundamental para alertar a consciência de um povo conformado com a injustiça instituída, demasiado exausto com o dia a dia na linha da rebentação para reagir de forma construtiva e coerente. A resistência ao Antigo Regime não teria sido a mesma sem os nossos cantores de intervenção que fizeram da canção uma arma. O poema traça o retrato de um país que se maravilha com a modernidade, enquanto asfixia para cumprir o pagamento da prestação mensal ao banco. A ironia fina e recheada de metáforas, aproveitando um momento de grande visibilidade para passar uma mensagem tão lúcida do Portugal atual, confirma o papel fundamental da arte para a identidade de um país.

Somos um país de grandes poetas, sempre fomos, porque a poesia é a linguagem dos sonhos, dos mitos, das quimeras, da tristeza, da ausência, da solidão, da saudade e da coragem. Somos um país de grandes poetas porque sofremos baixinho, mostrando ao Mundo as nossas feridas a medo, imbuídos de um orgulho frágil. Não gostamos de dar parte fraca, mas também não avançamos para o confronto corpo a corpo. Somos serenos, dignos, privilegiamos atos de contenção por oposição a provocações abertas. Na dúvida, escolhemos acatar em vez de retaliar, passar à capa em vez de chocar de frente, contemporizar em lugar de dar o peito às balas. Alexandre O’Neill descreveu magistralmente este estado de espírito em Um Adeus Português. “ o dia burocrático/o dia-a-dia da miséria/ que sobe aos olhos vem às mãos/aos sorrisos/ ao amor mal soletrado/à estupidez/ ao desespero sem boca/ao medo perfilado/à alegria sonâmbula/ à virgula maníaca/ do modo funcionário de viver (…) à pequena dor que cada um de nós/ traz docemente pela mão/ a esta pequena dor à portuguesa/tão mansa quase vegetal…”. O episódio que deu origem a este poema é um retrato de Portugal do Estado Novo: foi o pai do poeta quem impediu que este viajasse para se reencontrar com a sua amada, pedindo à PIDE que lhe tirasse o passaporte. Quando soube que ela morrera, escreveu seis poemas em sua memória, nos quais se inclui este portento.

A poesia é cirúrgica e encriptada, cruel no seu rigor, bela na sua profundidade, mas sobretudo na verdade que encerra. Conhece-se um povo pela poesia que produz. Somos líricos e épicos como Camões, românticos como Florbela, tristes como O’Neill, apaixonados como Pinto do Amaral, sonhadores como Tolentino. Somos visionários como Álvaro de Campos, simples como Alberto Caeiro, confusos como Pessoa. Somos um país de poetas que não empunha pistolas nem baionetas, melhores na palavra do que na ação. Como poderemos sair desta pequena dor à portuguesa é uma das grandes questões dos tempos em que vivemos.