Joel Neto

Pelo amor de Deus


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Sentado numa esplanada com a Marta em frente e o Artur entre nós, a jantar o seu jantar maluco – risos, gemidos e cantorias, comida pelo chão, água pelo ar e súbitos olhares de quem está a fazer cocó ao mesmo tempo -, vejo uma mulher que se aproxima. É gordinha, com um ar caseiro, e pára antes da passadeira de peões, a carregar no botão.

Não é uma mulher, percebo agora. É uma rapariga ainda, pouco mais do que uma adolescente, e tanto pode ir a caminho da festa que decorre atrás de nós – e onde outras pessoas com ar caseiro se juntam a amigos mais elegantes, até a granfinos aperaltados para ouvir Vivaldi interpretado com instrumentos de rock n’ roll -, como a caminho da casa de algum colega com quem partilhe a faculdade, para uma noitada de estudo.

Não sei: alguma coisa nela me parece desligada, ou fora de lugar. E só ao fim de alguns segundos percebo que traz na mão um cigarro.

Branco de uma ponta à outra, mais longo do que a média – igualzinho aos Davidoff Gold que fumei durante anos. E não é que, ao acercar-se de mim alguém que esteja a fumar (ou talvez ao contrário), eu não continue a abrir as narinas, farejando o ar, para matar saudades do tempo da inconsequência e da introspecção. Mas, ao fim de um ano e tal de abstinência, sem recair ou sequer considerar um charuto em dia de festa, olho para uma pessoa que traz um cigarro e algo nela me desconcerta.

Ademais alguém que fuma assim, como esta rapariga: enquanto se desloca com fins práticos. Sem pausa ou estilo – sem olhar sequer um pouco para a vida, como nos cigarros pensativos de Eça.

É o quê, isto: uma defesa? Um mecanismo de persuasão própria ao serviço de uma demanda não totalmente concretizada? Uma simples tentativa de obliterar o passado, tão inútil como a do que tenta conter o vento com as mãos? Um modo de assegurar que a minha linguagem corporal mostra ao Artur o que de facto penso sobre os cigarros (ainda que o tenha ignorado durante 30 anos), na esperança de que ele considere pensar o mesmo?

E se, mesmo assim, o meu filho decidir fumar? E se decidir beber? E se insistir em consumir haxixe, cocaína, heroína, sintéticas? Até onde vai o meu espaço para dissuadi-lo, e como? Proibindo? Fiscalizando? Até que idade? E depois de deixar de conseguir fiscalizar, o que faço? E quando a própria Constituição me disser que já nem de proibir tenho o direito?

Só pensar nisso é uma vertigem. Tenho um amigo, pai de dois rapazes na recta final do liceu, que já considera comprar três charros e fumá-los com os filhos, só para a seguir lhes poder dizer que tudo bem – sintéticas é que nunca, pelo-amor-de-Deus. E se calhar é o que me resta fazer também: começar a conter os danos ainda antes de a tragédia acontecer.

A verdade é que não me vejo a usar frases como “Enquanto estiveres debaixo do meu tecto…” ou “Tu não tens quereres”. Toda a minha vida, se não foi mais nada, foi uma busca obsessiva da liberdade individual, e o modo como o Artur insiste em comer sozinho, e mover-se sozinho, e brincar sozinho garante-me tudo menos que esteja livre dessa custosa insolência. Como poderia ser eu agora a sentenciá-lo?

Talvez a maior aprendizagem que eu tenha a fazer, como provavelmente todos os pais, seja essa: perceber que o meu filho tem o direito de dar cabo de si mesmo. Mas ainda posso pedir pelo amor de Deus.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)