Valter Hugo Mãe

Ouvir o pai


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Sobretudo nos primeiros dias, mas ainda nos primeiros meses e anos depois da morte do meu pai, era comum acontecerem pequenas epifanias em que me esquecia disso e algo fazia pensar que o encontraria, poderia ainda falar-lhe, porque a normalidade era sempre essa: a de ele estar vivo. Com os anos, agora mais de 23 anos passados, foi acabando essa ilusão e o desaparecimento do meu pai sedimentou e reclamou então a normalidade. Contudo, há dias, acordando de minhas noites de apneias e pressas, voltei a esquecer da morte e acreditei, por instantes, que o meu pai estaria algures já acordado também, e eu poderia perguntar-lhe sobre meus assuntos e até reclamar do Mundo diante do seu ar ambíguo.

Por um instante, para mim, o meu pai voltou a estar vivo para, subitamente, lidar de novo com a notícia da sua morte. Não é o mesmo que haver consciência da morte. É um pequeno novo luto que se guarda para essa nova perda. Quando acontece, morre outra vez e experimentamos, no dia, uma perda que se vasculha em nossa capacidade de perder ainda mais, e humilha exactamente por isso, porque temos a capacidade de perder ainda mais. Como se não bastasse. Não bastassem 23 anos de ausência.

Tenho a idade que ele tinha quando ficou doente. Sinto que é inevitável medir o tempo como se fosse inevitável comparar sua vida com a minha. Por causa disso, estou um pouco no seu lugar. Um lugar, por definição, algo invertido e que deveria significar que não preciso mais dele, sou como ele, deveria saber o que sabia, não ter senão adultez e responsabilidade diante de mim. Mas isso não é verdade. Comparar as nossas vidas só serve para reiterar meu lugar de filho, o seu lugar de pai, e o quanto há de abandono na evidência de um faltar. Assim, julgo que invento modos de imaginar sua presença. Uma função para os dias de hoje, mesmo tanto depois de tudo. Os pais precisam sempre de ter função e os filhos vão invariavelmente buscá-los a seu favor, colocados como escudos contra as investidas do Mundo.

Um pai morto tem ainda muita serventia. Pode ser tão intenso que interfere com tudo.

É verdade que avança o tempo e sinto-me perder o resto de menino a que me agarrei. De todo o modo, não sem resistência e, mais ainda, sem a perplexa tristeza de ter de ser assim. Quase acreditei que não perderia jamais a condição esperançada dos mais novos. Mas há algo no corpo que se limita, algo que afunila para nos obrigar a um gesto cada vez mais curto, mais inibido, mais arriscado, que nos explica que tudo nos pede outra distância, muito menor propriedade, menor segurança. Com isso, a vida aprende a intensidade, de facto, e treina a importância imaterial. Aquilo que não há ou há na ideia e na emoção. Um jeito de construirmos Deus na nossa própria escuridão.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)