Joel Neto

O limpo e o sujo


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

É claro: a higiene é a primeira vítima. Ou aquilo a que demasiados anos de cidade nos convencem constituir a higiene, pelo menos. Uma pessoa está habituada a tomar banho todos os dias, às vezes até de manhã e novamente a seguir ao ginásio, e de repente nasce-lhe um bebé. Acaba-se tudo. Primeiro o ginásio (e pior se essa pessoa vier de deixar de fumar, mas isso fica para outra crónica). Entretanto, no primeiro mês ainda consegue tomar pelo menos um duche rápido, mas só se for o pai. Depois disso, nem pai nem mãe (e pior se não houver avós por perto, mas já chega de lamúrias por hoje).

De resto, não são apenas os nossos corpos que já conheceram melhores dias. Temos a camisola bolçada, porque quando enfim íamos para limpá-la impôs-se outra urgência qualquer, e entretanto já estávamos tão concentrados noutro biberão, ou noutra sesta, ou noutra fralda, que nem recapitulámos.

E ainda há isso, as fraldas. Mesmo as de leite: limpas é que não são. A dado momento um tipo já mudou tanta fralda que começa a esquecer-se de que aquilo é cocó. Mas, até esse dia, chega a sonhar que tanto cocó, de tão inexorável, começou a desenvolver uma consciência. Eu imagino-o até a assumir características antropomórficas. Um génio do mal: nada mais nada menos do que o Dr. Cocó, um cientista enlouquecido aos comandos de uma ogiva carregada (lá está) de cocó, e cujo único medo são os autoclismos.

– Hei-de cobrir o mundo de cocó! – grita para o assistente maléfico. – Hei-de cobri-lo de cocó, nem que seja a última coisa que faça!

É por essa altura que uma pessoa começa a ter saudades de quando estava apenas soterrada em ranho. E, quando lhe ocorre que ainda não há muito tempo tinha por supremo pavor dar por si numa roda de amigos na qual se partilhasse – sei lá – uma salsa roja e alguém fizesse double-dip (oh, como é tonta a desocupação urbana), chega a rir-se.

São meses até que se registem as primeiras melhoras. E é preciso estar atento. Eu, para recuperar metade do padrão de higiene matinal, recuei ainda mais uma hora no despertador, só para acordar antes do meu filho. Mesmo assim, já não impeço o Gauguin e a Colette de subirem para os sofás, que aproveitaram a distracção para experimentar. Sendo eles a acorrer à primeira limpeza em torno da cadeira onde o Artur come, encolho os ombros. E, se há cotão encaracolando pelos recantos do lavatório, pois paciência, que amanhã ou depois a Sónia está aí.

Há uma espécie de amor ao caos que se aprende, e que facilita a sobrevivência. Até porque não tarda o garoto, vencida a fase bebé, começa a ir comer à malga dos cães, e isso sempre é melhor do que vir assoar-se às nossas calças, que não há outras lavadas.

Não, limpo é que nada disto é. Mas num belo dia ele começa a encher-nos a cara de baba com o que julga serem beijos bem dados. E depois espalha comida em redor ao sacudir a bacia como pensa que a mamã faz quando ouve música. E o próprio dia de hoje não terminará sem que eu traga mais um dióspiro do pomar e me ponha a dividi-lo com ele, uma colher para o bebé, outra colher para o papá – mucos e tudo.

Quem quer uma vida totalmente limpa? Uma vida totalmente limpa nem chega a ser uma vida, percebo-o agora.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)