Joel Neto

Mas eu era lisboeta


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

E, agora, como é que eu digo ao Artur que Lisboa não poderá ser a cidade dele, como durante tantos anos foi a do pai, mesmo depois do regresso à ilha? Como é que eu lhe explico que, se quiser fazer de Lisboa a sua cidade natural, a sua referência intelectual e estética – a sua geografia bibliófila e o seu anúncio de tendências, uma parceira disponível a abrir-lhe os braços sempre que ele lhe sorrir -, terá de estar de facto presente, pagar uma fortuna por uma assoalhada mal parida, abrir conta na EDP e carimbar o cartão de cidadão, caso contrário sempre que tiver o desplante de se instalar no mais modesto hotel virá de lá um manga-de-alpaca para lhe cobrar uma taxa turística?

Tenho ali o meu recibo, sob o pé do candeeiro de ráfia, dobrado tão miudinho que quase consigo esquecer-me dele. Mas o mal está feito. Lisboa cobrou-me dois euros de taxa de turista porque eu cometi o deslize de dormir uma noite num hotel. Dois euros a mim e outros dois à Marta, habitantes da cidade (seus estudantes, seus trabalhadores, seus consumidores) durante um total conjunto de mais de 30 anos. Isto é: com os cumprimentos dos doutores Moedas e Medina, adversários em tudo menos nesta desfeita – e toca a andar, Terra bem nobre e leal/ Tu és o castelo da proa/ Da velha nau Portugal.

Não é coisa que se perdoe assim do pé para a mão, até porque ninguém está a pedir desculpa. E também não me comove por aí além que o Artur tenha sido poupado por esta vez. Tanto quanto posso especular, pode até ter-se tratado de uma manobra para ganhar a confiança do garoto e garantir a fidelidade do freguês. Até porque ele nos ouve, “Quando o pai vivia em Lisboa”, “Lembras-te da tia Elsa, do grupo das amigas da mãe de Lisboa?”, “Um dia que vamos a Lisboa o pai e a mãe vão levar-te ao Jardim Zoológico a ver os suricatas”, “Anda, canta connosco, Lisboa, menina e moça/ menina/ da luz que os meus olhos vêem/ tão pura/ teus seios são as colinas/ varina/ pregão que me traz à porta/ ternura.”

Vai partir-lhe o coração, Lisboa. E eu já devia ter desconfiado: vou ao Porto e sou tratado como família, vou a Coimbra e a sala enche-se, vou a Braga e fico a conversar com amigos até de madrugada – Lisboa nunca fez mais do que a sua obrigação. E o que é ela, hoje, senão um hábito em que os próprios residentes vão perdendo mão, escorraçados pelas rendas impossíveis, os cafés ao preço de restaurante, as sardinhas com Ketchup, uma economia inteira a atender em inglês, o Santo António retocado para dar romantismo à pobreza? Onde está a Lisboa em que o empregado piadético sabia o nosso nome, e marcávamos encontro para a Loja das Meias, e nos cruzávamos por acaso com o Pedro Mexia no Snob, e víamos filmes no Quarteto, sozinhos na sala, numa sessão da meia-noite?

Que espécie de intimidade alguma vez o meu filho poderá ganhar com Lisboa se nunca puder ver um filme numa sessão da meia-noite no Quarteto, acompanhado por ninguém mais do que o projectista desejoso de que ao menos não faça questão de ver o genérico final todo até ao fim?

Não estou certo. Mas, se quiser que ele chegue a ter uma relação com essa cidade que o pai amou, vou ter de puxar de melhor retórica do que a que tenho hoje. E talvez de comer o recibo dobrado sob o candeeiro – o recibo e, já agora, os canhotos do Quarteto (que já nem sequer existe).

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)