Há cada vez mais madrastas e padrastos. E preconceitos para desmontar

Patrícia Castilho é madrasta de duas meninas e tem uma página nas redes sociais que se chama "Querida Madrasta"

As inseguranças e as incertezas, os medos e as responsabilidades, os desafios e as expectativas. Nem tudo é um bicho de sete cabeças. As famílias reconstituídas são uma realidade cada vez mais comum. Há mitos que é preciso desmontar e preconceitos a desconstruir.

Patrícia Castilho é uma madrasta feliz de duas enteadas de 6 e 11 anos. É enteada também, os seus pais separaram-se quando tinha 4 anos, viveu com os avós maternos, suas figuras de referência, não era criança de levantar problemas. Aceitou e adaptou-se à situação. Hoje os seus dias são um somatório da sua vivência e do seu ambiente. Em outubro do ano passado, criou a página “Querida Madrasta” nas redes sociais. “Ajudo madrastas na harmonia familiar e na relação com os seus enteados”, explica. Dá dicas de parentalidade, partilha ideias e pensamentos de forma regular, praticamente diária.

“Tento ser para as miúdas o que gostava de ter como madrasta”, confessa Patrícia Castilho. Adapta-se às suas personalidades, percebe as suas brincadeiras, escuta o que têm a dizer, fala o que tem a falar. Antes de as conhecer, há pouco mais de dois anos, fez o trabalho de casa com o pai das crianças, o que gostavam de fazer, o que gostavam de ver, o que gostavam de comer. “Um processo feito ao ritmo delas”, conta. Com delicadeza e sem pressa. Tudo bem arrumado na sua cabeça nesta reconstituição familiar. “Ninguém vai substituir ninguém. As crianças percebem quando as pessoas gostam delas, as tratam bem, e correspondem. O coração não tem de estar fechado, é possível amar mais pessoas.” Não é substituir, é acrescentar. É enriquecer vidas. “Não queremos substituir ninguém. Os pais ocupam o lugar que quiserem no coração dos filhos”, diz.

Patrícia Castilho deu de si e colhe os frutos. Nas conversas, nas brincadeiras, nos passeios, na ajuda nos trabalhos de casa, nos beijos e abraços espontâneos, que acontecem do nada.

António Landeiro é pai de dois rapazes, de 19 e 17 anos, e padrasto de duas jovens com 21 e 19. Uma família reconstituída, alargada, pais e filhos, madrasta e padrasto, enteados e enteadas. Todos debaixo do mesmo teto, cada um com as suas diferenças e semelhanças, paixões e convicções. Uma experiência com dez anos, gerindo dias de escola, dias de atividades extracurriculares, estadias mais convenientes às rotinas, conversas com a mãe dos seus filhos, apoio às filhas da sua atual companheira e esposa. “O mais fácil é ser o mais normal e natural possível”, refere António Landeiro.

Sem complicar, sem filmes, com aspetos assumidos desde o início. Construir uma família, estar presente, saber ouvir, perceber inseguranças, falar. Ser ponto de apoio, suporte, estar ali. Um processo normal com dias bons e menos bons, mais fáceis e mais complicados. “Nunca ninguém tentou substituir ninguém”, garante. Cada um com o seu papel, cada um no seu lugar, cada um com o seu espaço. “Nunca foi nada forçado, dei sempre espaço, não andei ali a pressionar”, recorda.

A composição familiar tradicional deixou de ser a norma, há sempre exceções à regra. Os censos mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE), de 2021, mostram 94 336 núcleos familiares reconstituídos com um filho não-comum, 24 688 com dois filhos não-comuns, 5693 com três filhos não-comuns. Dos dados recolhidos nos Censos 2021, o INE apresentou um retrato das estruturas familiares. As monoparentais e reconstituídas aumentaram e já representam 27,3% das famílias portuguesas. O panorama muda, as dinâmicas também. E há desafios, naturalmente.

Um novo casal tem a sua própria relação, namorar, conhecer-se dentro de quatro paredes, definir regras. E a relação com os filhos comuns e não-comuns. Catarina Mexia, psicóloga clínica, terapeuta de casal e familiar, realça essas vertentes. “O casal tem de aprender a negociar as diferenças sob o olhar atento de cada um, dos filhos e das famílias de origem. Há que conseguir um equilíbrio entre abrir-se ao exterior, flexibilizando as suas fronteiras de modo a incluir os filhos e o outro progenitor, através dos filhos, e necessidade de se centrar em si mesmo, própria de um casal recente”, sublinha.

Os filhos também não têm uma tarefa fácil, sobretudo na gestão das lealdades em relação ao progenitor ausente. “É preciso que percebam que receber o padrasto ou madrasta não significa trair a mãe ou o pai.” É um processo que demora o seu tempo. “Por sua vez, se existem outros filhos, a construção de um sistema fraternal é também um desafio, por vezes dificultado por antigas ou novas alianças e coligações entre irmãos e meios-irmãos.”

Seja como for, há que ter em consideração vários fatores, segundo Catarina Mexia. “A idade dos intervenientes, como decorreu o processo de separação, o tempo que mediou o início da nova relação, a forma como o outro aceitou ou enquadrou a nova relação na sua vida emocional, a saúde emocional da atual relação, a fase do ciclo de vida em que a nova família se encontra, a gestão das expectativas, do ‘agora é que vai dar certo’”, assinala.

Amor, acima de tudo, amor. E empatia. Amar, criar laços, saber colocar-se no papel dos mais novos, dar colo, cuidar, ter rotinas, estabelecer limites, dar o exemplo. “Não temos qualquer legitimidade se não dermos o exemplo, consistência em tudo o que fazemos”, aponta Patrícia Castilho. “As miúdas ganham outra família.” Uma família porque há amor, porque há respeito.

“Ter sucesso depende muito mais dos pais do que dos filhos”, adianta Patrícia Castilho. Gerir ciúmes e caras tristes é complicado. A forma como se lida com esses sentimentos faz toda a diferença, depende da pessoa, da separação, suas circunstâncias e seus impactos. “As inseguranças que uma mãe tem, uma madrasta também pode ter, podemos ter os mesmos receios. O meu companheiro tem duas filhas, uma relação eterna com a mãe das filhas, e eu aceito isso”, garante.

Não disputar, não complicar

O nome “Querida Madrasta”, página na qual Patrícia Castilho partilha as suas experiências, não surge por acaso. “É preciso desmistificar a imagem que a Disney tem eternizado de que todas as madrastas são más.” Há perguntas, dúvidas e incertezas, que vão chegando até si. Madrastas de primeira viagem, antes solteiras, antes sozinhas, sem filhos, de repente uma nova família, o que fazer. Os ciúmes e as comparações. “Não é o grau de parentesco que define se somos bons ou maus. Se for uma madrasta omissa não vou ter qualquer papel relevante na vida das minhas enteadas”, diz Patrícia Castilho. “Não existimos para complicar mais a vida, mas para descomplicar.” Um caminho feito de aprendizagens e adaptações constantes para toda a família. Envolver para fazer parte.

Há sempre comentários infelizes, da nova mãe, do novo pai, nas creches e nas escolas, quando não há necessidade de colocar as crianças nessa situação, confronto desnecessário, confusões evitáveis. “Não há uma receita para ser madrasta”, defende.

Não há uma fórmula, mas há um medo comum. O receio de não aceitação. Rute Agulhas, psicóloga clínica, psicoterapeuta, terapeuta familiar, fala disso. “As madrastas e padrastos devem ter expectativas realistas e reconhecer o seu lugar e o seu papel na família, conquistando o respeito das crianças em vez de o exigir. Jamais devem tentar ser os substitutos do outro progenitor.” Em sua opinião, acrescenta, “devem estabelecer vínculos afetivos, de forma gradual e sem pressa, mantendo um papel mais secundário no que respeita ao exercício da disciplina e da autoridade”.

Para António Landeiro, pai e padrasto, substituições e imposições não fazem qualquer sentido, não é, de todo, o caminho para o sucesso numa nova família, numa nova realidade. Definidas as regras, estabelecidos limites, a vida segue. Nem as madrastas são as bruxas más, nem os padrastos os maus da fita. “Reserva-se o espaço dos pais para funcionar bem e é importante que todos se sintam bem num ambiente familiar diferente”, comenta. “Tentar ser o mais natural possível, não é nenhuma competição por um espaço, é mais alguém que está ali para apoiar e ajudar, não para disputar.”

A harmonia familiar é crucial, é necessário reconhecer papéis, ajustar expectativas, partilhar sentimentos para regular emoções, segundo Rute Agulhas. “Ser pacientes e focarem-se, acima de tudo, na criação de laços afetivos com as crianças, respeitando o seu espaço e privacidade e promovendo uma comunicação aberta”, sustenta a psicoterapeuta.

Catarina Mexia adiciona alguns fatores, decidir o que é importante, promover suavemente a mudança, respeitar a estabilidade familiar, apreciar as pequenas coisas. E estar preparado para o que possa acontecer. “Pode ser difícil para os enteados aceitarem-nos ou demonstrarem afeto por inúmeras razões e nenhuma delas ter a ver com o que sentem por nós. Lidar com a reviravolta na vida deles, a sua própria dor e as questões de lealdade, criam um terreno instável”, avisa.

Ansiedade, culpa, desespero

Importa contextualizar. Se antes, no início de tudo, a designação madrastas e padrastos era usada para nomear o substituto do cônjuge falecido, agora, e desde já alguns anos, generalizou-se aos companheiros de uma segunda relação. “Do ponto de vista do companheiro da relação anterior, que não morreu, será a designação mais adequada?”, questiona Catarina Mexia. “Esta é uma designação que não faz muito bem à autoestima dos envolvidos”, frisa.

O passado pesa, as histórias tendem a mostrá-los como pessoas perversas e cruéis, que querem roubar afetos. A situação não é fácil para ninguém numa nova composição familiar com outros elementos que podem causar estranheza. “O novo casal precisa de criar novas regras, integrando o passado, mas percebendo que o presente é outro. Situação que, muitas vezes, traz desconforto, conflito e onde o padrasto ou madrasta são vistos como os causadores de tal mudança”, destaca Catarina Mexia.

Olhados como os maus. Ou, numa visão totalmente oposta, como bons, como os salvadores depois de uma separação. Esse mito existe. “Quando, por exemplo, a madrasta era efetivamente a mulher que substituiu a anterior mulher por morte, era vista como a mulher completa, capaz de alimentar, vestir, nutrir emocionalmente o frágil viúvo e a sua família de crianças que ele ama e não pode cuidar”, lembra Catarina Mexia. Isso era dantes. “O equivalente nos dias de hoje seria a supermadrasta que faz bolos, vai às compras com as teenagers, joga videojogos, etc. O progenitor é quem acredita mais neste mito, que faz com que o outro se veja como alguém extremamente necessário na relação com os enteados”, acrescenta. A realidade é outra, todos têm virtudes, todos têm defeitos.

Os mitos geram expectativas irrealistas que, de acordo com Rute Agulhas, levam a sentimentos de frustração, zanga, ansiedade, culpa, impotência. Há os mitos negativos e os mitos positivos, todos com repercussões complexas na gestão de expectativas. Eis alguns exemplos. Famílias recompostas são famílias de segunda categoria. Madrastas e padrastos nunca irão gostar uns dos outros. Padrastos e madrastas são pessoas más. Ou o seu contrário. Madrastas e padrastos são segundos pais. O amor é instantâneo. “Ou seja, falsas crenças que tendem a criar expectativas demasiado otimistas ou ‘cor-de-rosa’ sobre esta realidade familiar, minimizando as dificuldades e os desafios expectáveis”, observa Rute Agulhas.

Há outros mitos que permanecem. Madrastas e padrastos mais exigentes do que os pais. Não é bem assim, é difícil ganharem o seu lugar, sim, mas não são intransigentes e antipáticos. Outro mito é o do amor instantâneo. “Se para nós foi tão fácil apaixonarmo-nos, será natural e fácil amarmos os filhos um do outro. Na realidade, amar alguém não significa que gostemos automaticamente de todas as outras pessoas com quem eles estão relacionados. Sendo filhos, a proximidade é maior logo de início, mas é um processo, e ainda que seja natural haver essa expectativa, envolve trabalho”, repara Catarina Mexia.

Uma família adotiva nunca estará à altura de uma família biológica? Não se pode comparar alhos com bugalhos, não se pode colocar tudo no mesmo saco, é difícil e até contraproducente estar a encontrar diferenças e semelhanças seja na qualidade conjugal, seja na felicidade, entre famílias reconstituídas e famílias de primeiro casamento. “Com o tempo, a maioria das crianças adapta-se bem à vida da família reconstituída. As diferenças que existem entre enteados e filhos de famílias do primeiro casamento são relativamente pequenas. Se o primeiro casamento foi conflituoso ou abusivo, uma família reconstituída pode oferecer um modelo mais saudável”, afirma Catarina Mexia. E, quando não corre tão bem, não se baixam os braços. “Quando existe uma clara rejeição da madrasta/padrasto, em vez de tentar desesperadamente ganhar a aprovação e o amor dos enteados, será mais indicado encontrarem-se em si mesmos e na relação.” Um passo de cada vez.