Estar de olho nas cataratas

Hoje, a facoemulsificação é um procedimento relativamente rápido, feito em regime de ambulatório e com o doente acordado

Antes diabolizadas por serem conotadas com uma cegueira praticamente certa, as cataratas têm hoje um prognóstico bem distinto. A cirurgia (quando necessária) é feita em regime de ambulatório e o doente deixa o hospital passado pouco tempo, pelo seu próprio pé.

Começa quase sempre com uma espécie de névoa, a visão que se vai turvando, a acuidade visual que se vai perdendo com o passar da idade, os halos que se formam à volta da luz, o número do autocarro que já não se consegue ver, as legendas na televisão que já se tem dificuldade em acompanhar, as alterações frequentes na graduação dos óculos, por vezes uma dificuldade excessiva em conduzir à noite, uma intolerável sensação de encadeamento, aqui e ali a sensação de visão dupla. Não o queremos de todo assustar, caro leitor, mas se já não caminha para novo, se esta descrição lhe é familiar e se já há algum tempo não vai ao oftalmologista, está na altura de marcar consulta. Até porque as cataratas atingem uma parte muito considerável da população idosa (ver caixa).

A boa notícia é que muito tem mudado a este nível. Se no século passado eram imediatamente conotadas com uma cegueira praticamente certa, hoje o cenário é bem distinto. “Agora a maior parte das pessoas já é operada antes de deixar de ver totalmente. E em condições normais é totalmente reversível”, assinala Pedro Meneres, diretor do serviço de oftalmologia do Centro Hospitalar Universitário de Santo António, no Porto.

Mas vamos ao início. As cataratas são a “perda progressiva da transparência do cristalino [uma das duas lentes que temos no olho; a outra é a córnea]”. “Quanto maior for esta opacidade, maiores vão ser as perturbações da visão”, acrescenta o especialista. Pita Negrão, coordenador de oftalmologia do Hospital CUF Descobertas, em Lisboa, recorre a uma metáfora para explicar o que acontece aos nossos olhos quando as cataratas se desenvolvem. “Olhando para o olho como se fosse uma máquina fotográfica, o que sucede é que a objetiva da máquina perde a transparência. E o que é que temos de fazer? Temos de mudar a objetiva para que volte a ser transparente.”

“A maior parte das pessoas já é operada antes de deixar de ver totalmente. Em condições normais é totalmente reversível”, explica o oftalmologista Pedro Meneres

E a explicação não podia ser mais simples. Tudo se resume ao facto de envelhecermos. E ao envelhecermos há um processo de oxidação que se traduz em dores de cabeça várias. Claro que depois há outros fatores que podem precipitar ou acelerar o problema. “Algumas medicações, por exemplo. Sabemos que tratamentos prolongados à base de cortisona podem ter esse efeito. A própria diabetes pode acelerar o processo, porque se traduz num aumento da idade vascular.” Note-se que há outro tipo de cataratas – congénitas (que estão presentes no nascimento ou logo após o mesmo) ou traumáticas (provocadas por traumatismo), por exemplo -, mas não representam de todo a parte mais substancial dos casos.

À boleia de um dentista

E como se tratam? “O tratamento, quando necessário, é cirúrgico”, esclarece o médico da CUF. Impõe-se, no entanto, uma ressalva: nem todos os doentes que têm cataratas precisam de ser operados no imediato. Nalguns casos, a evolução é tão lenta que nem sequer chegam a ter de ser submetidos a cirurgia. Mas de volta à cirurgia. Facoemulsificação é o palavrão que dá nome. Pita Negrão volta a socorrer-se de uma metáfora. “O cristalino é como se fosse um tremoço, uma lente transparente que tem uma cápsula à volta. O que fazemos é abrir uma espécie de tampinha nessa cápsula e, depois, com os ultrassons, destrói-se e aspira-se o que lá está dentro. A seguir, colocamos nesse mesmo espaço uma lente que se desdobra. E cuja graduação é calculada a priori.” Curiosamente, a inspiração para esta técnica até surgiu quando um afamado oftalmologista, Charles Kelmann, estava no dentista. Reza a história que tinha ido fazer uma limpeza de tártaro quando perguntou ao colega que o tratava que tipo de aparelho estava a usar e ele lhe respondeu que se tratava de uma broca movida a energia de ultrassons. E assim nasceu a ideia de fazer apenas uma pequena incisão no olho, destruindo a catarata através de ultrassons. Entretanto, a técnica, exigente mas certeira, massificou-se e foi aprimorada.

“Olhando para o olho como uma máquina fotográfica, o que sucede é que a ‘objetiva’ perde a transparência”, reconhece Pita Negrão, oftalmologista

Hoje, a facoemulsificação é um procedimento relativamente rápido, feito em regime de ambulatório e com o doente acordado, uma vez que apenas é aplicada anestesia tópica. “Passado umas horas, está a sair pelo seu próprio pé. Nos primeiros dias tem de colocar umas gostas e não pode apanhar nem pó nem vento, mas a reabilitação é rápida”, assegura Pedro Meneres, que também desconstrói a ideia de um possível desconforto motivado pela inserção de uma lente artificial. “Ao contrário das lentes de contacto, que são usadas à superfície e podem potenciar o desconforto, esta lente [em acrílico] é uma lente intraocular, colocada numa zona onde não temos essa sensibilidade.” E prevenir, é possível? Nem por isso. Claro que uma alimentação equilibrada, um corpo livre de tabaco e de quantidades excessivas de álcool será, em teoria, mais saudável e, portanto, menos propenso a processos de envelhecimento e oxidação mais acelerados, mas apenas isso. No entanto, há algo relevante que pode e deve ser feito, alerta o especialista: “Nesta idade em que este tipo de problemas começa a aparecer é muito importante fazer uma vigilância regular. Porque tanto podemos estar a falar de cataratas como de glaucoma ou de uma degenerescência macular [doença degenerativa da área central da retina] ligada à idade. E nestes casos a deteção precoce do problema pode ser fundamental para que o tratamento seja mais eficaz.”

Factos & números

50%
A percentagem de pessoas com mais de 70 anos que têm cataratas relevantes ou que já foram submetidas a cirurgia.

2
A partir da entrada na terceira idade, é aconselhada vigilância regular, com idas ao oftalmologista de dois em dois anos.

A influência da Segunda Guerra
As lentes intraoculares surgiram durante a Segunda Guerra Mundial, quando o oftalmologista inglês Harold Ridley reparou que, na sequência de uma explosão na cabine de plástico do avião, vários fragmentos entraram nos olhos dos pilotos que seguiam a bordo, sem que estes apresentassem qualquer tipo de rejeição ao plástico.