Joel Neto

Elogio da vidinha


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Há pouco a Marta saiu com o Artur pela primeira vez. Os dois sozinhos, isto é: ele no seu ovo, olhando-a absorto através daquele espelho retrovisor enorme que comprámos pela Internet, e ela ao volante, toda formidável, conduzindo pelas estradas da ilha numa vaidade infantil. Vão à fisioterapia, para que a Marta apenas conseguiu consulta à hora em que eu tenho uma gravação, mas hão-de inventar mais uma paragem ou duas – nem que seja para irem comprar leite ao supermercado. Que mãe não sonha com esse dia em que pela primeira vez se passeia com o seu bebé, só ela e ele, numa frequência a que mais ninguém poderá aceder senão através da admiração (e talvez um pouquinho de inveja)?

Eu também estou desejoso. Havemos de ir à Unicol ou à Terceira Farma, para comprar os desparasitantes do Gauguin e da Colette – quem sabe até ao Nildo Neves, a reunir os parafusos, as trinchas e os picaportes de que sempre preciso para as reparações de Primavera. Hei-de explicar-lhe a diferença entre o ferro galvanizado e o aço inoxidável, conhecimento útil a quem vive num arquipélago com semanas inteiras de humidade relativa acima dos 95%, e depois vamos os dois ao Athanásio, ou ao Forno, ou talvez ao Verde Maçã comer aquela empada bastante boa que na verdade é a única empada em condições da ilha.

(Eu tinha jurado nunca viver numa terra sem empadas como deve ser. É apenas mais uma prova do que a Terceira vale: até ao facto de as empadas serem tão más resiste.)

E, quando estivermos sentados à mesa, vai aparecer um amigo do passado, uma leitora simpática, a senhora que me atendeu dias antes ao balcão das Finanças. Há-de dizer: “Que lindo”, e eu encenarei uma momice tímida, na tentativa de fazer rir o bebé, porque tem um sorriso luminoso. É claro que nunca conseguirei fazê-lo rir como a Marta faz, ademais em público. Mas posso tentar. Ou então talvez consiga que se espreguice. Como é adorável, o meu filho, quando se espreguiça – aquele misto de ternura e abandono, aquele meio Maria e meio Madalena. Ou quando eu o ponho ao alto e se abraça ao meu peito, com as mãos que ainda nem sabem agarrar, encaixando a cabeça ao canto do meu pescoço, por sobre a clavícula, abaixo da orelha, na esperança de que eu aperte ao de leve.

Como é adorável, o meu filho. Como é adorável ver nascer um mundo.

E agora já não sei bem qual era o fito desta crónica. Qual era o fito desta crónica?

Ah, era elogiar a vidinha – só isso. A vida real. A vida de todos os dias. E falar dessa pergunta que me assalta agora a todo o instante: como conseguiste chegar aqui vivo sem isto? Essas perguntas. Quanto mais tempo terias vivido sem conhecer este edifício de afectos e de medos – sem os experimentares e distinguires, sem trazeres esses recursos no bolso, sem os invocares nos teus livros? Como conseguiste escrever livros sequer?

Temos uma grande capacidade de sublimação – nós, as pessoas. E, sim: eu sempre disse que ter filhos não era aquilo que nos distinguia dos animais. Ainda acredito nisso. Mas agora o que ressoa em mim são as palavras que o Serafim me escreveu: “Nunca mais vais ser dono da tua vida”. Oxalá nunca mais tenha de sê-lo. Quem quer ser dono da sua vida, pelo amor de Deus?

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)