Celebrar o fim de um amor. Uma festa ou uma fuga?

“Quando existe um término, muitas vezes já temos meses ou anos de ponderação, pelo que, quando ocorre efetivamente, a separação é para muitos uma libertação”, explica Catarina Lucas

Despedidas de casado à imagem de despedidas de solteiro não são nada comuns por cá (haverá festejos e brindes à porta fechada em algumas casas). Há tanto a acontecer: uma história que termina, planos desfeitos, emoções à flor da pele. A catarse ou a negação da perda?

Quando um casamento termina, há uma história construída a dois que acaba, há sentimentos para digerir, há feridas para fechar, há um passado para arrumar e um futuro para viver. São momentos complexos, densos e intensos, a transbordar de emoções. Cada história é uma história. Cada separação é uma separação. Cada pessoa é uma pessoa e suas circunstâncias, maneiras diversas de agir e reagir. A vontade de celebrar o fim de um amor tem razões que a razão pode ter dificuldade em entender. Por vezes, o que se sente por dentro não bate certo com o que se vê por fora. O que parece nem sempre é.

Uma separação é, por norma, uma situação delicada com muita coisa para lidar. Interrompem-se planos, refazem-se sonhos, quebram-se percursos e objetivos traçados a dois. Há uma linha que se corta. Duas vidas que se separam. Se as festas de despedida de solteiro são habituais, festejar um divórcio da mesma forma não é comum – será um nicho tão residual que a procura é incipiente e a oferta praticamente desapareceu em termos comerciais. As poucas empresas que organizavam despedidas de casados, no nosso país, deixaram de ter esse serviço. À porta fechada, será outra história. Por vezes, com brindes e lágrimas de alegria. Por vezes, com dor e lágrimas de choro. Por vezes, com tudo isso misturado. Com ou sem festa. Mais introspetivo ou mais extrovertido. É sempre um tempo que custa.

Perante o contexto, as razões para festejar não são simples de perceber. Catarina Lucas, psicóloga clínica, terapeuta de casal, autora do livro “Vida a dois”, começa por lembrar que uma separação não acontece de um dia para o outro. “Quando existe um término, muitas vezes já temos meses ou anos de ponderação, pelo que, quando ocorre efetivamente, a separação é para muitos uma libertação. Há ainda situações tóxicas que levam a desejar muito o fim.” Apesar disso, não é fácil. “Todavia, até nestes casos pode ser difícil a adaptação a uma nova rotina, bem como lidar com o que se perdeu”, observa Catarina Lucas.

Gustavo Pedrosa, psicólogo clínico, terapeuta familiar e de casal, enquadra de várias formas o desejo de festejar um divórcio. Há diversas leituras. “Tipicamente, é para marcar um novo ciclo de vida, festejar uma nova situação, e é mais sentido quando são relações abusivas, de manipulação, muito desgastantes”, realça. Relações negligentes, relações destrutivas, relações negativas, relações que se arrastam sem amor. Quando acabam, marca-se um novo passo, manda-se a bola para frente, a vida tem de seguir. Tenta-se, pelo menos. “É a necessidade de exteriorizar que se entrou numa nova fase, a necessidade de demonstrar à outra pessoa que, apesar da separação, está bem, vai conseguir ultrapassar, que a perda não é sua”, repara.

Daí o ambiente de festa, as imagens e fotografias de viagens e passeios idílicos nas redes sociais, as mensagens que são uma espécie de recado com alvo bem definido, a sensação de que tudo está bem. Seja como for, cada um tem as suas razões. “O que não quer dizer que seja sempre assim, é difícil fazer generalizações”, observa Gustavo Pedrosa. O que funciona para uns, não funciona para outros. O que uns exteriorizam, outros guardam para si. Quando uns querem festa e agitação, outros querem silêncio e recolhimento. “Depende muito de situação para situação. Pode ser um festejo real, quando são relações mais negativas”, reforça o psicólogo clínico. Há muito para resolver internamente, encaixar e arrumar.

Catarina Lucas concorda que não se pode generalizar essa exteriorização festiva do fim de um casamento, de uma relação. “É preciso avaliar cada situação isoladamente”, aponta. “Até mesmo aquilo que se assume como uma celebração, pode ser um sinal de alerta para algo que não está bem resolvido”, avisa. A psicóloga e terapeuta de casal pede atenção. “Uma separação implica, quase sempre, uma reorganização e um período de reflexão, pouco compatível com estados de euforia. É preciso olhar com cautela para isto, embora saibamos que diferentes pessoas lidam com as situações de diferentes formas”, afirma.

Arrumar memórias, fazer o luto

Uma festa é uma festa. Uma festa marca um acontecimento, seja ele qual for, e as pessoas querem divertir-se. Vítor Rodrigues, psicólogo e psicoterapeuta, lembra esse lado de ritual, essa maneira de coordenar a mente e o corpo em torno de um significado. Festejar uma separação tem os seus significados. “Há vários tipos de finalidade. A vingança, a menos produtiva, que tende a não fazer bem ao fígado de ninguém. Marcar uma boa memória. Assinalar uma mudança de vida, uma nova etapa”, adianta o psicoterapeuta e autor do livro “Constrói a tua felicidade”. Nos dois últimos casos, ou seja, recordar coisas boas do passado e mostrar que se quer mudar de página, há várias pretensões. “A intenção de tornar tudo mais confortável, mais conciliável, que a separação não seja uma brecha na relação das pessoas.” “Pode ser bonito e psicologicamente saudável”, acrescenta o psicólogo.

Há outras explicações. “Assinalar um momento de relativa libertação emocional.” É difícil desfazer planos, desmontar sonhos, abdicar de projetos em comum. “Pode ser um acontecimento com uma certa complexidade emocional.” Tenta-se reconstruir a vida, passar para uma nova fase, mobilizar amigos e familiares que apoiem essa nova etapa. Pode ser um momento de alívio ou pode ser uma fuga. “Uma tentativa de negação da dor e do sofrimento imediato”, assinala Vítor Rodrigues.

Uma mulher quer outra vida. Um homem quer outro ar. Ou vice-versa. Um casal quer sair da relação em que se encontra. Uma separação é sempre um momento de mudança, independentemente da forma como aconteça. Um divórcio pressupõe um processo que, na teoria, segue vários passos: negação, raiva, negociação, depressão, aceitação. Uma festa nesta transição pode ser uma fuga, um momento de raiva, e não a aceitação do início de uma nova fase pessoal e relacional, eventualmente. Ou todo o seu contrário.

“As nossas memórias são muito narrativas. Quando temos uma boa história, memorizamos melhor, encontramos melhores significados para os acontecimentos”, comenta Vítor Rodrigues. O psicólogo e psicoterapeuta fala da memória e do luto, uma separação é sempre uma perda. Mesmo que a cabeça faça tudo para esquecer, as tripas fazem questão de lembrar, mesmo contra a vontade, manifestando-se, por vezes, em stress, em doença.

Num casamento, constroem-se memórias um do outro, recordações que se acumulam. Boas e más. Quando a relação termina, e já não há amor, é preciso saber lidar com o que está a acontecer. “É preciso entender que, sempre que há um divórcio ou uma separação, há um processo de luto que precisa ser feito, independentemente de quem tomou a decisão”, refere Catarina Lucas. “Há sempre uma perda, de um projeto de vida, de um estilo de vida, de uma pessoa e até de benefícios, bens ou regalias. Logo, é preciso aceitarmos que serão tempos difíceis e de adaptação”, acrescenta. Dar tempo é fundamental. Para digerir, para aceitar, para seguir.

Quando uma relação termina, há quem se agarre aos bons momentos e avance à procura de criar novas memórias, ir a outros sítios, conhecer outras pessoas. Há quem queira guardar o que foi bom e regressar a esse passado e a essa pessoa sem medo ou dor de evocar quem se amou. Uma festa de separação faz sentido assim, segundo Vítor Rodrigues. “É um primeiro passo para criar a noção de que será feliz fora desse casamento, procurar e criar novas memórias, uma nova perspetiva.” É uma nova fase em que se procura apoios e um chão seguro e se redefine uma rede de relacionamentos. O cenário pode ser inverso quando se vive agarrado ao que se perdeu e não se ultrapassa a dor, o sofrimento. E coração não sara, continua em ferida.

Há um antes e um depois de um amor. Há sentimentos à flor da pele. Há diferentes formas de reagir e agir. Há diversas maneiras de seguir em frente. Segundo Catarina Lucas, é preciso ler nas entrelinhas, perceber o que está entre camadas e não se vê. “Os estados de euforia e aparente êxtase com o fim de uma relação podem, de facto, esconder estados mais depressivos ou negação da perda, podem simbolizar um luto mal resolvido.” É preciso parar e pensar. Refletir e agir. “Devemos dar tempo a que este processo possa ser feito com a serenidade necessária, analisando o que vivemos até então e o que queremos viver daí em diante.” É necessário respirar. Com ou sem festa.