Margarida Rebelo Pinto

Cedência não é consentimento


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Durante quanto tempo vamos continuar a falar de assédio? O tempo que for necessário para alterar a visão redutora e machista que atravessa gerações e os mais variados quadrantes da nossa sociedade. É um tema eterno porque é eterno o profundo desentendimento, voluntário ou involuntário, por parte de uma certa classe de machos e também de um certo tipo de fêmeas que, na educação dos seus filhos rapazes, não lhe explicam o que está em questão, perpetuando comportamentos de homem das cavernas em pleno século XXI. As mesmas que apontam o dedo às vítimas com comentários do estilo “não se pusesse a jeito”, “quem a mandou ir trabalhar de saia curta”, ou, o pior de todos, “se calhar até nem se importou”. São estas mulheres que também alimentam o machismo, o sexismo e os consequentes abusos que daí derivam.

Mas, afinal, o que podemos entender por assédio? O assédio não acontece só quando uma pessoa quer e a outra não. É quando uma pessoa já sabe que a outra não quer e insiste, usando o seu poder hierárquico sobre o outro para obter dele aquilo que pretende. Trabalho no meio jornalístico há mais de 30 anos e já perdi a conta dos episódios, no mínimo desagradáveis e muitas vezes graves, contados por mulheres que envolveram palavras e gestos que se enquadram no assédio. Também eu não escapei a investidas bacocas. Antes de completar 27 anos já tinha três histórias tristes para contar, que resultaram todas na minha saída, abandonando trabalhos que simplesmente adorava. Nunca vou esquecer, primeiro a perplexidade, seguida de uma reação imediata de repulsa provocada pelo nojo visceral que a situação me provocava. Sou rápida no gatilho e nunca senti medo, mas nem todas as raparigas ou mulheres têm um guerreiro dentro do coração. Testemunhei várias raparigas, quase sempre muito novas, que se sentiam obrigadas a ceder à pressão. Não foi bom nem bonito, mas foi a realidade, e como diz o Tennessee Williams, “nem Deus pode mudar a verdade”.

Questionada sobre o caso Rubiales-Hermoso num recente encontro com jovens que me perguntaram o que pode uma mulher fazer perante uma tentativa de assédio, respondi com duas palavras: limites e autoestima. E expliquei que consentimento e cedência não são, nem nunca podem ser sinónimos. A ideia de eu quero posso e mando porque sou o homem da casa ou o chefe da tribo é ancestral e endémica. É quase tácito que as mulheres devem compactuar com certas “características” masculinas porque os homens são mesmo assim, há que aguentar e calar, dar-lhes o desconto e alombar a vergonha, o nojo e a culpa. Nada mais errado e perverso. Estou cansada de viver numa sociedade na qual muito é tolerado ao homem pelo facto de ser homem, enquanto uma mulher se torna facilmente alvo de expiação por ser mulher. Dois pesos e duas medidas. Não contem comigo para um discurso tolerante e conciliador perante episódios de puro abuso, violência de género e desresponsabilização do autor quando o autor não demonstra respeito por outro ser humano, porque é disso que se trata.

A objetivação da mulher, seja para esfregar punhos e colarinhos, parir descendentes, ser sexualmente explorada ou emocionalmente subjugada, é sempre uma aberração. Sempre. E cedência não é consentimento.