Margarida Rebelo Pinto

Cão ou gato?


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Há anos que recebo uma visita inesperada e antipática no meu jardim, um gato malhado e gordo que gosta de dormir sestas nas espreguiçadeiras ao sol, ao qual nunca consegui fazer uma festa. Citando o grande Serafim Saudade, sábio e maravilhoso personagem de Herman José, o Mundo está dividido em duas partes, a parte A e a parte B. Reconhecendo à partida que as visões dicotómicas da realidade pecam por ser redutoras e injustas, arrisco-me a afirmar que existem dois tipos de pessoas: as do tipo cão e as do tipo gato. As primeiras são alegres, dóceis e afáveis, gostam de comer e de dormir, tentam apanhar todas as bolas, ladram muito mais do que mordem e rosnam em tom de aviso antes de passar ao ataque. São inteligentes, domésticas, leais, gratas e confiáveis, ficam de orelha murcha quando algo corre mal, obedecem sem pensar, brincam com as crianças e ajudam as velhinhas a atravessar a rua. Um cão é sempre um cão. Tem personalidade, dignidade e fidelidade caninas.

A pessoa do tipo gato é outro estilo. Ao contrário do cão, não nasceu para bajular ninguém, é avessa à domesticidade e esquiva a compromissos. Pode ir ficando por perto, mas muitas vezes não se vai embora exclusivamente por preguiça, porque não tem paciência. Aliás, não tem paciência para nada nem para ninguém, pois não possui um pingo de fé na condição humana. Olha-nos à transparência como se não existíssemos, não vem quando queremos e só aparece quando lhe apetece. Gosta de cultivar a distância e o mistério e acha-se muito importante pelo facto de não nos dar confiança. As pessoas do tipo gato são lábeis, escorregadias, ambíguas e pretensamente muito independentes. É fácil dar-se ares de independência debaixo de um teto, com comida à discrição e um novelo de lã para brincar, mas não fazem nada do que lhes dizemos. Já experimentou dizer a um gato, senta, deita, rebola? Limitam-se a devolver o olhar por cima do ombro, mesmo que tenham a altura do robot CP3O, ou então encolhem os ombros e focam-se no horizonte, demonstrando assim a importância que temos no seu mundo: irrelevante ou nula. Por tudo isto cães e gatos nunca se deram bem, a não ser que tenham sido criados na mesma marquise e a vida não lhe tenha dado outra hipótese.

Os cães, quando fogem, voltam sempre. Podem voltar feridos e famintos, mas sempre felizes por regressarem a casa. Os gatos podem ou não voltar, mas nunca por saudades ou por arrependimento. Voltam por preguiça, por egoísmo, porque as nossas Whiskas afinal são melhores do que as da vizinha.

As pessoas cão são enérgicas, entusiastas e divertidas, não têm medo do ridículo e, sendo sérias, levam-se pouco a sério. Os gatídeos, por seu lado, são moles, indolentes e fanfarrões, têm horror ao ridículo e detestam que os critiquem, porque se levam muito a sério, acham-se a última Coca-Cola do deserto.

Uma vez estava no deserto e descobri no fundo do cantil uma Coca-Cola. Mas ao lado estava um ice tea e eu preferi o fresquinho do limão a tanta bolha a subir-me pelo nariz. É mais eficaz e menos espalhafatoso. E mais sincero, não sei se me entendem. Um ice tea é mais sincero do que uma Coca-Cola. A sério, estou mesmo convencida que sim. Estarei a tergiversar? Provavelmente. Mas se calhar é porque cada vez gosto mais de cães e gatos nem vê-los. Idem, idem para pessoas das ditas espécies.