Joel Neto

Aos saltos no sofá


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Às vezes vejo o meu filho abrir os braços na minha direcção, quezilando ao de leve no colo da mãe, e quase bato palmas. Não que haja rivalidade entre nós (era o que faltava). Simplesmente, a mãe está garantida. Como poderia não estar? A mãe é memória genética, odor de segurança, camião-cisterna. E mais ainda uma mãe como a Marta, que é ainda parceira de folia, contadora de histórias, pedagoga indefectível, cozinheira minuciosa e tantas coisas mais. Se o Artur não tivesse um apreço infinito pela mãe, já e para sempre – mesmo com os sobressaltos que os dois hão-de encontrar, como manda a psicologia -, então algo estava muito mal programado nesta espécie. Já o pai é outra coisa. Um pai pode ser presente ou ausente, familiar ou estranho, cúmplice ou severo – até tirano. Depende do papel que quiser (e puder) ter. Portanto, ambos precisam de fazer um determinado caminho, e o da mãe é mais trabalhoso. Mas o pai vem de longe, e acontece perder-se.

É por isso que, quando o meu filho implora para vir para o meu colo, eu me sinto aliviado. Não lhe sou estranho, pelo menos. Mas, fora isso, o que é que eu sei sobre o modo como ele nos vê, a mim, à Marta, até aos cães? Como é que o Artur vê o avô João, ou os primos Coutos, ou os tantos amigos com que nos juntamos – às vezes aqui em casa, entre sensações conhecidas, e outras até nas casas deles, ou em restaurantes, ou em parques de merendas, por entre cheiros, sons e texturas nunca dantes encontrados? O mundo não lhe parece ser desagradável. Ele ri, experimenta, arrisca. Mas, a certa altura, fixa um de nós. Às vezes até se detém, como que num fascínio, passando as mãos no nosso rosto e chegando-se para trás uns milímetros – uns milímetros que seja – para nos observar melhor. Mas o que vê, de facto? O que lhe dizem os olhos vivos, os lábios macios, a tez morena da Marta? O que lhe diz a minha barba hirsuta, por debaixo do meu olhar expectante? O que lhe dizem o Gauguin e a Colette, enquanto ele vai partilhando com eles, de olhar quase científico, a sua panqueca matinal – dentadinha ao cão, dentadinha à cadela, dentadinha ao bebé?

Eis o que saberemos um dia, e eu só não rogo aos deuses do tempo que apressem isso tudo, de tão ansioso, porque nesse caso se abreviaria o resto, igualmente fascinante. Mas olho-os a todos, aos quatro, e torno a espantar-me: são tão bonitos. Todos os dias me espanto: o meu filho é bonito, a minha mulher é bonita, até os meus cães são bonitos. Tudo à minha volta é bonito: o jardim que plantei, a cabana onde trabalho, a ilha onde vivemos, o mar que se alegra e enerva e apazigua para lá dela. Às vezes apetece-me pôr-me aos saltos em cima do sofá, como aquele actor maluco. E não é que a maluquice dele fosse das mais benignas. Mas, ao mesmo tempo, quantas pessoas nunca se sentiram concretizadas o suficiente para terem vontade de saltar num sofá? Quantas pessoas nunca experimentaram a felicidade de querer congelar um momento, na esperança de que o mundo não lhe pudesse acrescentar nem retirar mais nada – nem uma vez na vida, quando eram jovens, no dia do seu casamento, quando nasceu o seu primeiro filho, numa manhã de Natal, quando o cônjuge fez um exame preocupante e deu negativo? Quantas pessoas nunca foram completas?

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)