Margarida Rebelo Pinto

Antes e depois de Abril


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Como explicar a Revolução de Abril aos jovens? Tenho o privilégio de fazer parte da última geração que nasceu antes da madrugada clara, o dia inicial e limpo eternizado no poema de Sophia, e descobriu o sabor da liberdade durante a adolescência. A última educada no cumprimento de regras estritas, na qual o medo e respeito se confundiam, que viu os pais fazerem carreira sempre na mesma empresa e os jogadores de futebol sempre no mesmo clube, a última a assistir aos discursos de Marcelo Caetano, sem ser em documentários.

Ninguém vê com nitidez aquilo que já não está à sua frente. O exercício da memória é tão fascinante quanto traiçoeiro, porque as recordações são reconstruídas cada vez que as revisitamos. Faz parte do ofício de escritor usar a ferramenta do passado como um cozinheiro usa o sal e as especiarias. Perante a velocidade vertiginosa a que o Mundo se apresenta, nunca foi tão fundamental voltar ao passado para preparar o futuro. Ainda me lembro da proibição de ligar a televisão à hora das refeições, porque tal hábito iria desvirtuar a convivência em família. E de existir apenas um televisor em casa, a preto e branco, com antenas como as das formigas, nem sempre fácil de sintonizar, no qual vi as primeiras imagens da Revolução de 74. Os meus pais festejaram a tão desejada mudança, mas, em 75 decidiram partir para Espanha para escapar ao COPCON, a nova polícia política que levou a cabo uma perseguição indiscriminada a pessoas conotadas com a Direita, muitas delas contra a ditadura, que apenas sonhavam com a concretização de ideais democráticos. Como tinha 10 anos, não me explicaram o motivo da viagem. O que poderia ter sido uma fuga para o estrangeiro, como aconteceu com milhares de portugueses que partiram para o Brasil, foi para mim um passeio até Sevilha, do qual recordo os prédios com pátios incríveis e uma praça imensa cheia de pombos onde a minha mãe parecia sentir-se em segurança. Foi como uma aventura de “Os Cinco”. Nós também éramos cinco e só semanas mais tarde, quando decidiram que podíamos regressar a Lisboa, me explicaram o que acontecera. Era assim o mundo dos adultos, uma ilha, e o das crianças outra ilha. “Não podes ver este filme, fazer isto ou aquilo, porque não é para a tua idade”, foi talvez a frase repetida mais vezes pelos pais da minha geração.

Depois de nós, os pais aprenderam a falar abertamente com os filhos, as ilhas deram lugar a um só território. O que me assusta é o extremo oposto a que chegámos: crianças a quem é dada voz, vontade e liberdade como se fossem adultos, que podem escolher ainda na puberdade a que género pertencem e que, não raro, mandam nos pais como pequenos ditadores. A democracia chegou a Portugal, fresca e frágil como todas as democracias recentes e continua a navegar em águas turvas 50 anos depois. É ainda uma criança, a quem é preciso estabelecer limites. Logo a seguir ao 25 de Abril, as pessoas confundiam comunismo com socialismo e socialismo com democracia. Meio século depois, já é tempo de exigirmos aos nossos políticos maturidade democrática e de explicarmos aos nossos netos que a democracia e a liberdade nunca são direitos adquiridos e que o populismo é hoje tão ou mais perigoso do que um ditador que adormecia o povo com sopas de vinho para enganar a fome e o discernimento.