A sexualidade durante e após o cancro

Ter uma doença oncológica não é o fim da vida sexual. Apesar de ainda existir pudor em abordar o tema nas consultas, da parte dos doentes e dos profissionais de saúde, é essencial redefinir prioridades, tomar decisões informadas e descobrir novas formas de intimidade.

O diagnóstico de linfoma não Hodgkin B Difuso, estádio IV-A, com atingimento do fémur esquerdo, chegou em fevereiro de 2015 e logo na primeira consulta no IPO de Lisboa Ana Carvalho (nome fictício), 44 anos, foi alertada para o efeito dos tratamentos. “Prepararam-me para o que me poderia acontecer e que em 95% dos casos de cancro havia abandono do parceiro”, relata. Outros efeitos secundários foram referidos e não eram animadores, como ficar careca, engordar, alteração do cheiro corporal, do humor, desgaste emocional e afrontamentos. Em resumo, uma junção de ingredientes suscetível de conduzir a uma possível separação.

Nas consultas seguintes, houve a preocupação médica em perguntar pelo parceiro, pelo seu estado emocional, o seu relacionamento com as filhas de Ana, e a equipa quis conhecer Francisco. Os receios eram muitos e começaram a intensificar-se logo após o primeiro tratamento de quimioterapia. “Foi aí que comecei a ter a noção da realidade que nos esperava nos meses seguintes.” Confessa que teve “a sorte” de o marido ter “preferido” ficar ao seu lado incondicionalmente. “Senti sempre segurança, conforto e apoio.”

E, no meio de toda esta reviravolta na vida de um casal com filhos [Ana tem duas filhas e Francisco tem uma, fruto de relacionamentos anteriores], onde cabe a sexualidade? “Nunca existiu um afastamento nem me senti indesejada, até pelo contrário. Sempre que possível, estávamos a fazer amor pois temos crianças em casa e tínhamos de gerir quando se ausentavam”, conta. Parar a vida sexual não foi opção. “Existiu sempre o medo de engravidar uma vez que tive de deixar de tomar a pílula ou qualquer outro tipo de contracetivo. Sempre que ia realizar exames de imagiologia ao IPO (raio-X, TAC ou PET) tinha de fazer um teste de gravidez antes.”

Num dos internamentos que teria supostamente a duração de três dias, Ana acabou por ficar internada duas semanas, o casal brincava, “já eram demasiados dias sem sexo”, partilha. Tanto quanto possível, tentou continuar a vida normal. E isso significava estar com amigos, “rodeada de amor”, continuar a trabalhar (com exceção dos dois dias após os tratamentos), receber pessoas em casa, estar sempre presente na vida das filhas, ouvir música… “Nunca faltei a atividades, reuniões, continuei a levá-las à escola e tentava estar bem-disposta. E, claro, se fosse possível ter uma vida sexual ativa, era bem melhor.”

Em junho de 2019, foi diagnosticado cancro da próstata ao marido, Francisco Leão (nome fictício), 52 anos. “Fui submetido a uma cirurgia robótica na Fundação Champalimaud no espaço de um mês após receber o diagnóstico.” Os médicos informaram-no que uma das consequências desta cirurgia poderia ser a disfunção erétil durante algum tempo, mas que a probabilidade de tal acontecer “dependia muito de mim e da minha parceira”. Para evitar o pior, aconselharam-no a “iniciar a vida sexual uma semana após a cirurgia”.

Outra das preocupações seria a perda de urina sempre que fizesse esforços, algo que também seria temporário. “Ambas as situações foram faladas na primeira consulta e nas seguintes. O médico e a equipa de enfermagem tiveram sempre a preocupação de falar connosco e de saber como estávamos a gerir ambas as situações”, revela Francisco.

Passar por um novo diagnóstico de cancro, tão pouco tempo depois da doença da mulher, foi um duro golpe para ambos. “Foi mais uma batalha que tivemos de enfrentar, até porque ele não aceitou bem e teve uma reação bastante negativa”, diz Ana. Era frequente repetir: “Se ficar com disfunção erétil, não quero ficar contigo e prefiro estar sozinho”. Ana não tem qualquer pudor em afirmar que foi o sexo que os salvou. “Ficou tudo bem, ficámos bem, fazíamos jogos, eu usava lingerie sexy e o sexo era regular.”

Da vergonha ao tabu

O impacto do diagnóstico de cancro na vida pessoal e do casal é intenso a nível psicológico. “Quando um doente está a lutar pela sobrevivência, reformulam-se prioridades e é como se a intimidade e a atividade sexual passassem para último plano”, explica Mafalda Cruz, radioncologista no IPO do Porto e sexóloga. E apesar de a sexualidade ser um forte indicador de qualidade de vida, não é uma necessidade fisiológica e acaba por ficar secundarizada neste momento da vida de um doente.

“Face à ameaça de um cancro que diretamente impacte os órgãos sexuais (como o cancro da mama, da próstata, do testículo e os cancros ginecológicos) ou indiretamente impacte a sexualidade e a intimidade (colón, reto, e bexiga – sobretudo pela colocação das ostomias -, cabeça e pescoço, transplantes de medula óssea, entre outros), a sexualidade, a fertilidade e outros aspetos relacionados com a qualidade de vida passam a ser uma prioridade secundária”, realça Magda Oliveira, psicóloga clínica no Hospital CUF Porto, com diferenciação na área da psico-oncologia. Como tal, é importante garantir “um contexto seguro para a tomada de decisões informadas e para a disponibilização de suporte especializado ao longo de todo o processo de doença”.

A experiência de Cláudia Fraga, presidente da associação Movimento Oncológico Ginecológico (MOG), relativamente ao diálogo sobre o impacto do cancro na sexualidade foi completamente diferente. Foi-lhe diagnosticado cancro do ovário, em 2015, e teve uma recidiva três anos depois, o que obrigou a um total de cinco cirurgias e vários dias de internamentos. Separada do pai dos dois filhos, vive há quinze anos com o atual companheiro. “O tema da sexualidade nunca foi debatido nas minhas consultas nem antes das cirurgias, nem durante os tratamentos nem depois. Acho que ainda é um tema completamente tabu para as pessoas no geral.”

Cláudia Fraga, ex-doente oncológica e presidente da MOG – Movimento Oncológico Ginecológico
(Rita Chantre / Global Imagens)

Mafalda Cruz concorda e defende que alguns doentes têm dificuldade em trazer o tema para cima da mesa. “O que está estipulado é que deve ser o profissional de saúde a abordar a sexualidade e a discutir as soluções com os doentes ainda numa fase precoce do percurso oncológico, mas é um tema que ainda têm alguma dificuldade em abordar.” No caso do cancro da próstata, como a disfunção sexual é reconhecidamente um efeito secundário, “o doente já se sente mais validado e confortável em falar sobre a sexualidade”.

Cláudia Fraga acrescenta que este é um tema que não está no centro da atenção dos médicos, seja “porque não têm muita disponibilidade de tempo” ou porque “estão sobretudo focados na parte técnica e em tratar a doença”.

Falar de intimidade, sexualidade e fertilidade (muitas vezes, comprometida) pode ser desconfortável para os doentes, assinala Magda Oliveira, “destacando os sentimentos frequentes: embaraço, vergonha, medo, tristeza e até culpa”. Por esta razão, considera ser “vital que os profissionais de saúde que, muitas vezes evitam o tema com boa intenção, abordem estas questões com naturalidade, e com recurso a uma comunicação aberta, segura e sem julgamentos”.

No caso do cancro do ovário, “as mulheres entram em menopausa de um dia para o outro”, refere Cláudia Fraga, que nunca ouviu o que poderia acontecer ao nível de mudanças corporais com os tratamentos de quimioterapia. Idealmente, deve ser uma equipa multidisciplinar a acompanhar este tema, na qual intervêm médicos de várias especialidades, enfermeiros, psicólogos e fisioterapeutas, entre outros.

Como qualquer outra área de vida do doente que sofre alterações na sequência do cancro e dos seus tratamentos, também a sexualidade e intimidade são temas relevantes da consulta de psicologia. “Muitas vezes, é o motivo central da referenciação ou procura da consulta, outras vezes, é uma entre várias problemáticas a abordar ou emerge naturalmente no decorrer das sessões”, especifica Magda Oliveira.

Efeitos secundários

Depois da primeira cirurgia, a presidente da MOG não notou grande diferença porque recuperou bem, mas sentia que o companheiro tinha receio de a magoar. Mafalda Cruz denota que “os parceiros, muitas vezes, entram em modo cuidador e nem sempre é fácil sair deste papel mesmo quando a doença já está resolvida. Pode haver dificuldade em voltar a olhar para a pessoa que estava doente como um ser sexual”. Nestes casos, é preciso focar a atenção nos companheiros(as) que vão precisar de tempo para retomar a sexualidade.

“Qualquer cirurgia pode trazer as suas consequências devido às dores, à cicatrização, ao inchaço e o período de recuperação pode demorar algum tempo. Isso também traz um grande impacto ao nível sexual”, destaca a sexóloga. Alguns doentes têm ainda de ser submetidos a quimioterapia, imunoterapia, radioterapia e outros tratamentos sistémicos, que podem conduzir a fadiga, náuseas, perda de apetite, alterações da pele, entre outros. “Há mulheres que ficam com secura vaginal e a penetração torna-se praticamente impossível. A radioterapia na zona pélvica pode originar também estenose vaginal, fenómeno que torna o canal vaginal estreito e encurtado, o que condiciona a disponibilidade de ter relações sexuais.” É preciso fazer um treino de reabilitação com estas doentes para que possam continuar a ter uma vida sexual ativa.

Com a recidiva, em 2019, Cláudia Fraga notou muito mais mudanças “e o apetite sexual não era igual”, embora considere que “talvez não o seja também para qualquer mulher que entre na menopausa independentemente de ter uma doença oncológica ou não”. Com a doença a voltar, teve de ser ostomizada [colocar um saco temporário para criar um percurso alternativo para as fezes], o que tornou ainda mais complexa a vida sexual. “Se já é mau para a autoestima de uma mulher ter a barriga com cicatrizes, ficar ostomizada custa um pouco mais. O cancro traz muitos divórcios, mas o meu marido foi sempre muito respeitador e apoiou-me em tudo.”

Este pode ser o momento de maior união e de o casal “redefinir a intimidade”, indica Mafalda Cruz. Existem muitas formas de o casal se manter íntimo e que não passam apenas pela sexualidade. “Independentemente da idade, qualquer sobrevivente oncológico tem direito a uma vida sexual normal e saudável.”

A terapia pode ainda ser uma oportunidade para aprender novas estratégias que permitam “descobrir novas formas de intimidade e expandir o repertório sexual e íntimo”, refere Magda Oliveira. Quando os casais já estavam a atravessar uma crise antes do diagnóstico, a psicóloga clínica aponta ser essencial “a identificação e a referenciação precoce para intervenção”.

Sem qualquer preconceito relativamente às alterações corporais e mesmo quando “o saco” rebentava a meio da noite e era preciso acordar para mudar os lençóis da cama, Cláudia Fraga contou com o companheiro para a ajudar. “Era uma chatice, mas ele nunca se aborreceu.” Na terceira cirurgia, Cláudia deixou-o à vontade e disse-lhe que “já não era a mesma pessoa e que se ele quisesse seguir outro rumo deveria fazê-lo”. A reação foi contrária e a união entre ambos saiu fortalecida. Ana Carvalho sublinha todas as aprendizagens que ela e Francisco retiraram da doença de ambos: “Aprendemos que somos amigos, positivos e que, acima de tudo, nos amamos. Caso contrário, não teríamos ultrapassado estes dois cancros num espaço tão curto de tempo e com três filhas”.