Margarida Rebelo Pinto

Todos os muros caem


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Riscar a linha do limite ensina a desenhar a expansão. A linha do limite é diferente para cada país, para cada povo, para cada ser humano. Desenhar a linha do limite é obrigar os outros a pararem de fazer algo que nos agride, nos humilha ou nos enfraquece. Segundo os dados da HRANA, a Agência de Notícias Iraniana para os Direitos Humanos, foram precisos três meses de protestos, perto de 500 mortos e cerca de 17 mil detenções para o Estado Islâmico anunciar a suspensão da hedionda e discricionária Polícia da Moralidade. Entre as baixas, cerca de 60 são menores. Entre os detidos estão jornalistas, artistas, realizadores de cinema e figuras públicas, professores, médicos e obviamente ativistas, incluindo defensores dos direitos dos animais. A revolução no Irão acontece por todo o país, com manifestações em uma centena e meia de cidades, em 23 das 31 províncias do país. As escolas e universidades envolvidas são mais de uma centena e foram determinantes para a revolta que move uma nação exausta do garrote extremista. Estes dados vão estar desatualizados quando esta crónica for publicada. A anunciada suspensão da Polícia da Moralidade, a mesma que prendeu Mahsa Amini por uso indevido do véu, pode apenas ser uma manobra de cosmética para acalmar os ânimos no país e iludir a opinião pública internacional. As unidades de patrulhamento continuam a atuar pelas ruas e não existe uma indicação clara de que esta polícia tenha sido extinta. No entanto, o procurador-geral Mohamed Jafar Montazeri proferiu no passado fim de semana uma declaração no sentido de rever a lei que dita a obrigatoriedade do uso do hijab. O hijab é o Muro de Berlim do Irão, e, como todos os muros, irá cair. Os muros caem com as revoluções e as revoluções acontecem depois de décadas de sofrimento, de injustiças e de atrocidades. O Muro de Berlim durou 28 anos e foi derrubado na noite de 9 de novembro de 1989 pelas mãos da população de ambos os lados.

Em Portugal, que muros caíram desde a Revolução de Abril de 1974? É verdade que as mulheres conquistaram direitos básicos que lhes foram negados durante o regime da ditadura, como o de viajar sem autorização do marido ou de constituir sociedades comerciais livremente, o direito ao divórcio e mais tarde o direito ao aborto. Se pensarmos que só em 1976 foi abolido o direito de o marido poder abrir (o verbo violar seria o mais correto) a correspondência da mulher e que no tempo de Salazar uma professora do Ensino Primário precisava de apresentar uma autorização do pai, um parecer positivo do diretor do distrito escolar na qual lecionava e uma autorização dos Ministério da Educação Nacional para casar, já dá uma ideia às novas gerações do alcance das medidas machistas e tentaculares de uma sociedade patriarcal, misógina e atrasada. A sociedade portuguesa atual mudou, mas o caminho das pedras para a igualdade de género é uma tarefa perpétua, no qual as linhas traçadas vão avançando a duras penas. Cá andamos para o cumprir, em pequenos ou grandes passos, derrubando muros de pedra ou de pano, dentro e fora das instituições, fora e dentro de casa, para que as nossas filhas e netas possam viver numa sociedade cada vez mais igualitária e justa.