Valter Hugo Mãe

Sobral Centeno diz


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

A sua obra cria em mim a ideia de haver um poder anunciado, uma presença do poder que talvez se aluda exactamente para me submeter, para me falar de quem manda no Mundo onde busco, afinal candidamente, ser livre.

De algum modo, os trabalhos de Sobral Centeno expostos por André Sousa na Galeria Nuno Centeno são o raio-X da sua obra. Tenho a impressão de ver por infravermelhos o que vai na camada inferior de todas as telas, como um pressuposto, uma estrutura, um apontamento de alma que define o autor e o levou a maturar paulatinamente até ao esplendor que lhe reconhecemos.

O percurso pelo lado mais experimental e à deriva de Sobral Centeno, desde logo feito pelo desenho, é a descoberta dessa fonte de seus elementos fundamentais, desde os signos às formas, o que se oferece é uma certa nudez de tudo, como aliás é comum acontecer com o desenho. A nudez do pensamento de Centeno, sua colecção de vícios, não podia tornar-se mais clara do que com este levantamento daquilo que se escondia em seu arquivo.

Há algo de profundamente delicado, vulnerável e disponível no desenho. No caso de Centeno, há algo de comovente no que começa por ser um debate contra a obra perfeita, buscando o acidente sedutor, o acaso que não é ingénuo mas se impõe, como uma natureza que, por o ser, jamais será pura. A natureza é o território de todas as imperfeições, o que não impede a composição avassaladora total. E Centeno explorou claramente essa admissão do sujo mas progride para uma crescente relação com a ideia de rigor. Algo que não afasta a interferência sábia do acidente, mas que parece estabelecer uma estrutura de base onde tudo propende para a sensação de regra e até de hierarquia. A sua obra cria em mim a ideia de haver um poder anunciado, uma presença do poder que talvez se aluda exactamente para me submeter, para me falar de quem manda no Mundo onde busco, afinal candidamente, ser livre.

Falar de rigor num artista cuja obra admite a mancha enquanto explosão, a imagem levada à sua própria destruição – num processo que parece repensar a ansiedade geométrica anterior -, é singular. Falo de rigor no sentido em que existe uma intencionalidade imperiosa, um domínio do quadro que já não se compadece com a deriva de outrora. A vida toda de busca resulta numa segurança impressionante em que entendemos que tudo fabricou o alfabeto de Centeno. Todos os desenhos e todas as experiências levaram à criação de um conjunto de signos e formas que funcionam como caracteres para uma linguagem recorrente e própria. Na verdade, como se pressente desde o início, Centeno caminha para uma escrita, ele namora a escrita, porque tudo em seu trabalho se transforma numa linguagem que mistura o caracter com o pictograma. Indubitavelmente, diz. Centeno diz. Adoro que assim seja.

“abdcious 1961-1989” está patente até 31 de julho e é de facto uma garimpagem às gavetas no atelier do artista, que me lembro de ver abrir e remexer como quem considerava ser tudo possível. Afinal, foi possível esta exposição, que é uma verdadeira biografia de Sobral Centeno.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)