Joel Neto

Quase


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Têm muita coisa em comum, as meninas e os homens de meia-idade: cada um deles encontra-se na posse daquilo de que o outro mais sente falta.

Sempre me imaginei pai de uma menina. Melhor: imaginei-me durante bastante tempo pai de uma menina, até que a realidade foi arranjando maneira de me persuadir da existência de outras coisas quase tão belas como ser pai de alguém. Uma menina aloirada, de olhos amendoados e rabo-de-cavalo, cirandando pelo jardim com umas galochas e um boné virado ao contrário. Uma maria-rapaz clássica, curiosa quanto à agricultura e à mecânica automóvel, e que ali pelos 13 ou 14 desabrochasse numa adolescência luminosa – a rapariga bonita e culta e adorável que até então os garotos tivessem sido incapazes de descortinar, mas as amigas já temessem estar a formar-se, como um pesadelo tornado realidade.

Evidentemente, “uma adolescência luminosa” é um oxímoro, o patinho-feio um mito, a rapariga de boné um arquétipo. Mas, mesmo assim, ocorreu-me sempre em primeiro lugar uma menina. Se não uma maria-rapaz, então talvez como aquela que vi há dias no Hospital de Bonecas, na Praça da Figueira, e que ao reencontrar o seu ursinho acabado de remend…, perdão, em convalescença da delicada cirurgia a que as doutoras tinham sido forçadas a submetê-lo, após infortunada altercação com o cachorro doméstico (que também não fez por mal), o abraçou infinitamente.

Essa ou outra menina ainda, aliás. Sempre escrevi imenso sobre meninas. Mais do que sobre meninas, só talvez sobre os homens de meia-idade dos quais, nos meus livros, tantas vezes elas se tornam amigas (e vice-versa).

Têm muita coisa em comum, as meninas e os homens de meia-idade: cada um deles encontra-se na posse daquilo de que o outro mais sente falta. As meninas gostariam de ter a força, a responsabilidade e a segurança que julgam que um homem de meia-idade tem. Os homens de meia-idade gostariam de ter – de ainda poder ter, de não estar já tudo perdido para eles – a inocência, o maravilhamento e a gentileza que uma menina tem de facto. E eu gostaria (suponho) que a paternidade me apanhasse ao menos na meia-idade, não podendo apanhar-me antes.

E agora, claro, podia dizer que não interessa nada o sexo, que só importa vir com saúde, que desde que mãe e filho fiquem bem tudo o resto será irrelevante. É verdade. Além de que tenho história nas relações entre homens: sou produto, sobretudo, do meu avô – tive umas botas pequeninas iguais às botas grandes dele, tive uma plaina pequenina igual à plaina grande dele, até hoje esforço-me por me tornar na versão pequenina do homem grande que ele era. Mas ainda não seria esse o momento do amor. O amor, fora o amor abstracto que o pai de uma gravidez já pode sentir, começará nesse instante em que me parecer que nada faria sentido, afinal, senão sendo pai de um menino. Um menino verdadeiro, com um rosto verdadeiro, umas mãozinhas verdadeiras. Um menino concreto: exactamente aquele menino – com a inocência, o maravilhamento e a gentileza que só aquele menino poderia ter.

É por isso que nós olhamos para o ecógrafo com a admiração com que olhamos, e é isso que gostaríamos de poder explicar às nossas mulheres, nestas difíceis semanas finais: que também não é justo termos de nos manter racionais até tão tarde. Esta espera é outro tormento ainda.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)