Margarida Rebelo Pinto

O icebergue maldito

Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Uma mulher independente, que não precisa que um homem lhe pague as contas, é ainda vista com alguma desconfiança ou desconforto.

Há meia dúzia de anos ganhei o hábito de visitar um amigo que esteve sujeito a um internamento prolongado num hospital público de Lisboa. Às vezes basta um abraço, um mimo, uma piada divertida para alegrar quem está preso a uma cama, e, como nunca tive medo de hospitais, as visitas entraram na minha rotina. Numa tarde chuvosa, reparei na chegada de uma nova paciente à enfermaria. Tinha a cara feita num bolo, um colar cervical ortopédico, um braço engessado e a perna do lado oposto na mesma condição. Em voz baixa, perguntei ao meu amigo se tinha sido atropelada por um camião TIR. “Violência doméstica. Foi o marido, não morreu porque a polícia chegou a tempo.” Durante os dois meses seguintes, a senhora continuou internada.

Só nesta semana, uma mulher foi assassinada em Cascais à porta de casa pelo marido, outra está internada em estado crítico no Hospital de São João, no Porto, depois de ter sido baleada pelo marido do qual estava separada há alguns anos, e, em Valongo, uma mulher foi atingida na cabeça por um martelo empunhado pelo marido, que se suicidou depois de a julgar morta. Três maridos enlouquecidos de raiva, três casos que ilustram a pequeníssima ponta de um imenso e maldito icebergue. A APAV (Associação de Apoio à Vítima) regista mais de 50 casos de violência doméstica por dia. E o que acontece a todos os outros que ficam por saber? O estatuto de crime público é uma vitória porque obriga a que o processo corra, independentemente da vontade das partes, mas não chega, porque mudar a mentalidade machista, controladora, dominadora e castradora que impera do homem em relação à mulher é como carregar a pedra de Sísifo. Está enraizada aquela noção de posse legitimada pelo amor ou por uma união legal ou legalizada, espelhada em expressões como sou o teu homem, tu és minha, nas quais os pronomes possessivos se tornam abusivos. Entre marido e mulher não se mete a colher, lá em casa quem manda é ela, mas quem manda nela sou eu, fazem parte da nossa cultura popular como o galo de Barcelos ou a sardinha assada. Uma mulher independente, que não precisa que um homem lhe pague as contas, é ainda vista com alguma desconfiança ou desconforto. Tem a mania que é esperta, vai dar muito trabalho, não se consegue ter mão nela. E para quem se ilude, pensando que a violência doméstica só ocorre em meios economicamente desfavorecidos, recordo um episódio que assisti no início da década de 2000: um menino rico, pouco dado à inteligência, casou com uma amiga minha que quis controlar como se fosse sua propriedade. Quando ela saiu de casa, o pai dele recusou-se a promovê-lo na empresa familiar, alegando que, se não dava conta da própria mulher, como teria capacidade para gerir a construtora?

Além da denúncia imperativa, é obrigatório e urgente educarmos os nossos filhos para o respeito e o carinho, porque o futuro é deles. A questão de fundo é que não é com palavras, mas com ações que os formamos. De nada serve apregoar valores que não praticamos. A violência pode acabar com um tiro de revólver, mas começa com insultos, humilhações, gestos de desprezo e de negligência. A violência começa quando o respeito acaba e vai em crescendo, até ao ponto de o gesto de bater com a porta poder ser uma sentença de morte.