Margarida Rebelo Pinto

Nunca é tarde


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Talvez por causa de uma gripe persistente que me deixou o corpo moído e a cabeça a chocalhar durante duas semanas, escapou-me uma das efemérides mais importantes da História Contemporânea de Portugal. É comum fazermos a pergunta, onde é que estavas no 25 de Abril?, mas muitos esquecem outra, igualmente importante: de que lado do confuso e caótico processo democrático estavam os portugueses no 25 de Novembro? Se, antes da Revolução dos Cravos, o povo anestesiado pela fome e pelo fosso da desigualdade social vivia triste e alheado, em 25 de novembro de 1975 estava dividido entre aqueles que queriam viver em democracia e em liberdade e aqueles que desejavam instaurar uma ditadura totalitarista de extrema-esquerda, a ditadura do proletariado. A retomada do poder pelas forças democráticas salvou-nos de um quadro de opressão generalizada e de políticas económicas suicidas. Foi uma fase negra e conturbada, durante a qual o objetivo de Vasco Gonçalves era afastar e aniquilar todos aqueles que não estivessem alinhados com o processo revolucionário em curso, dando luz verde a despedimentos sem justa causa, a patrulhas do COPCON com vigias à porta de eventuais suspeitos, a mandados de captura em branco emitidos por Otelo Saraiva de Carvalho que permitiram desde detenções abusivas e discricionárias, a perseguições políticas que incluíam ameaças de rapto e de morte a filhos e familiares, à ocupação da banca, de herdades e de fábricas. O Verão Quente foi mesmo a ferver. Sem o movimento do 25 de Novembro, a esquerda delirante imbuída de radicalismos fanáticos teria transformado Portugal numa ilha perdida, em total dissonância com a democracia europeia.

A História tem o terrível hábito de romantizar os seus protagonistas, acabando por eternizar imagens redutoras e incompletas dos seus protagonistas. Lamento, mas Álvaro Cunhal não era um democrata, Cunhal era um comunista, Soares um socialista, Sá Carneiro um democrata e Freitas do Amaral um democrata-cristão.

Nunca é de mais repetir que os conceitos de direita e de esquerda, atualmente diluídos a ponto de criar espaço ao radicalismo na Europa, são tão amplos que se torna muito fácil tirar as mais variadas ilações, tantas vezes incorretas e falsas. A direita pode ser radical ou democrática, o comunismo nunca é democrático.

O radicalismo que se seguiu à Revolução de Abril quase mergulhou Portugal numa guerra civil. A reorganização das diferentes forças políticas e militares e a extinção do COPCON salvaram-nos do terror e do caos. Parece existir sempre na alma lusa uma certa reserva irónica que nos salva da violência e da loucura coletiva. Neste contexto, recordo as declarações de Pinheiro de Azevedo, então primeiro-ministro: “Já fui sequestrado duas vezes, não gosto de ser sequestrado, é uma coisa que me chateia”. Temos de facto uma vocação notável para revoluções e contrarrevoluções com pouco sangue derramado na rua, o povo é sereno, mas é fundamental não esquecermos que a democracia e a liberdade não são dados adquiridos. Nunca é tarde para recordar o passado, sempre na tentativa que nos seja útil no presente e no futuro. Basta pôr os olhos na guerra da Ucrânia para perceber que a ameaça totalitarista é uma realidade que não podemos ignorar, nem tratar com ironia ou displicência.