Medicina Hiperbárica: das infeções à surdez súbita

Carlos Cardoso conseguiu atenuar as sequelas da radioterapia que fez devido a um cancro na próstata com 20 sessões de medicina hiperbárica

Entrar numa câmara para respirar oxigénio puro é uma técnica ainda pouco conhecida, mas que é aplicada a um número crescente de problemas. E com sucesso. Em Portugal continental, está disponível em três unidades.

Corria o ano de 2005, análises de rotina e o diagnóstico: cancro da próstata. Carlos Cardoso, hoje reformado e com 69 anos, até se podia focar no desespero da notícia, mas foi o que veio a seguir que o atirou para uma dor que parecia não ter fim. Quimioterapia e 46 sessões de radioterapia, tem o número cravado na memória. Não é mero acaso. Foi a radioterapia que lhe roubou a qualidade de vida durante 15 anos. De volta a 2005, ao fim de dois meses de tratamentos, venceu o “bicho”, mas as sequelas ficaram, sofreu a chamada proctite rádica. “Comecei a ter dores nos intestinos, perdas de sangue, quando ia à casa de banho eram dores horríveis. Até já precisava de usar uma almofada para me sentar. Ia ao IPO, davam-me umas pomadas, queimavam-me feridas no intestino, mas eram remendos, não resolviam o problema. Andei anos em sofrimento”, relata.

Só em 2020 ouviu falar de medicina hiperbárica. Mora em Lisboa, falaram-lhe do Centro Hiperbárico de Cascais, um centro privado. Não pensou duas vezes. “Vamos para uma câmara toda em vidro, há descida de profundidade e lá dentro respiramos oxigénio a 100%. Explicaram-me que isso permite renovar as células.” Uma hora por dia, 20 sessões. Uma televisão ajudava a passar o tempo. Resultou? “A partir da segunda semana, comecei a notar melhorias. Em tudo. Até a subir escadas, não me cansava tanto. Depois, as dores nos intestinos foram embora, os sangramentos desapareceram. Nunca mais tive dores, já me sento de qualquer maneira.” Pagou mais de três mil euros pelos tratamentos, não se arrepende. “Vão-se os anéis, ficam os dedos e a verdade é que agora estou bem. Recomendo muito isto, até porque dá para muitos problemas.”

Carlos Cardoso sabe do que fala, as sequelas da radioterapia são só um dos muitos problemas em que as câmaras hiperbáricas são úteis. Aliás, originalmente, eram uma resposta para acidentes de mergulho, a doença da descompressão, só que evoluíram, e muito, nas últimas décadas. Mas, afinal, o que é a medicina hiperbárica? “É uma subespecialidade que trata pessoas a uma pressão atmosférica superior à normal. Conseguimos tirar benefícios terapêuticos quando respiramos oxigénio a uma pressão duas a três vezes superior à pressão atmosférica normal”, especifica Manuel Lopes, enfermeiro na Unidade de Medicina Hiperbárica do Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, que existe desde 2006 e é a única resposta em Portugal continental integrada no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Recebe utentes de todo o país.

Trata queimaduras, edemas, lesões desportivas

No fundo, são câmaras hermeticamente fechadas, coletivas ou individuais, onde os doentes entram e ficam numa pressão atmosférica semelhante a um mergulho ao fundo do mar. Permitem fornecer oxigénio a 100% – no dia a dia respiramos só 21% desse elemento, o resto são outros gases -, o que ajuda a regenerar tecidos em sofrimento, porque chega de forma muito mais eficiente a áreas a tratar e combate bactérias.

As indicações terapêuticas abrangem já um sem-número de problemas, garantem os especialistas. Além das sequelas da radioterapia e de acidentes de mergulho, ajuda a acelerar processos de cicatrização em feridas de pré-diabéticos, em casos em que há a possibilidade de amputação, em pós-operatórios, tem efeito nas infeções graves porque o oxigénio potencia o efeito antibiótico, tem altas taxas de sucesso na surdez súbita e na cegueira súbita, em queimaduras e edemas da pele, em problemas de ossos e articulares, no tratamento de lesões desportivas.

No Pedro Hispano, há uma câmara multilugar, com bancos frente a frente, que permite tratar 15 doentes sentados em tratamentos de rotina. Em três sessões por dia, consegue chegar a 45 doentes. Para o utente é comparticipado, mas a unidade luta por financiamento para mais uma câmara. Também são tratados pacientes em Cuidados Intensivos, às vezes basta uma sessão, são referência nessa matéria. “Desde intoxicações por monóxido de carbono a infeções muito graves, até doentes com necessidade de ventilador recebemos”, refere o enfermeiro.

Basta recordar o caso do ator Ângelo Rodrigues, que corria o risco de amputar a perna esquerda, depois de uma septicemia, e que fez tratamentos hiperbáricos. Ou, mais recentemente, o menino de 13 anos que ficou dependente após um acidente numa passagem de nível em Caminha e que começou a fazer oxigenoterapia hiperbárica.

Em Portugal, além do Pedro Hispano, também o Centro de Medicina Subaquática e Hiperbárica da Marinha, em Lisboa, embora não esteja integrado no SNS, recebe doentes referenciados pelos hospitais públicos. A resposta existe ainda nos Açores e na Madeira. A nível privado, abriu portas em 2019 o Centro Hiperbárico de Cascais, o primeiro do país a disponibilizar câmaras monolugares, ou seja, uma só câmara por doente. Maria Gameiro, a diretora, descobriu a medicina hiperbárica quando fez uma cirurgia estética nos Estados Unidos, depois de duas más experiências em Portugal. “Fui paciente. Senti o quão bem me fez, uma recuperação muito mais rápida.” Quis criar uma resposta privada no nosso país, chegou a existir uma no Algarve que agora está inoperacional. Bebeu do conhecimento da Marinha e do Pedro Hispano, “até porque é preciso médicos e enfermeiros com competências” em medicina hiperbárica. “Isto não é uma medicina alternativa, é absolutamente convencional, tem décadas de existência, mas ainda é muito desconhecida.”

O Centro Hiperbárico de Cascais (privado) é uma das três unidades de Portugal continental com câmaras hiperbáricas. As outras duas são no Hospital de Pedro Hispano (Matosinhos) e na Marinha (Lisboa)

Em Cascais, há duas câmaras individuais. Os pacientes estão sempre acompanhados por profissionais de saúde. Um tratamento de rotina, feito todos os dias, dura em média uma hora. Mas a pressão, a duração, varia de patologia para patologia e é definida pelo médico depois de uma avaliação inicial. Há casos que podem levar até nove horas dentro da câmara. E tanto se podem fazer apenas dez sessões, como 60. No Centro Hiperbárico de Cascais, um pacote de dez sessões custa 1700 euros, de 20 sessões são 3150 euros.

“A medicina hiperbárica não faz milagres, mas há cada vez mais evidência científica dos benefícios em várias doenças, como tratamento complementar. Até se tem dado passos na demência, já recebemos uma senhora com Alzheimer”, comenta Maria Gameiro, que assegura que “a procura tem vindo a aumentar”. Os casos mediáticos, como o de Cristiano Ronaldo, que recorre para acelerar a recuperação de lesões, têm dedo nisso.

Benefícios na fertilidade em estudo

O caminho faz-se em várias direções, de tal forma que o Centro de Medicina Subaquática e Hiperbárica da Marinha Portuguesa, que recebe doentes civis desde 1989, está a colaborar num ensaio clínico que visa estudar a eficácia da oxigenoterapia hiperbárica associada a técnicas de procriação medicamente assistida (PMA). “Temos feito alguns tratamentos de forma empírica, porque não existem ainda critérios definidos para tratar estes doentes. E o facto é que a nossa experiência tem-se revelado de bastante sucesso”, diz Carla Amaro, médica otorrinolaringologista com competência em medicina hiperbárica e diretora do centro da Marinha. Com duas câmaras, cada uma com capacidade para 12 pessoas, recebe doentes de hospitais públicos, privados, além dos militares. Por uma sessão de rotina, de hora e meia, cobra 62,20 euros.

Foi Miguel Raimundo, médico ginecologista-obstetra especializado em fertilidade feminina e em PMA, que quis estudar os benefícios na PMA e contactou o centro da Marinha. “Já havia casos reportados de sucesso, mas não havia nenhum estudo desenhado especificamente para câmara hiperbárica nesta matéria. Quem integra o estudo são mulheres com mais de 40 anos, com baixa reserva ovárica e que responderam mal aos tratamentos de PMA”, resume. O objetivo, segundo Carla Amaro, é que “a comunidade científica e médica olhe para esta terapêutica como coadjuvante nos tratamentos de fertilidade”. “Fazemos bastantes estudos no centro. Hoje, temos solicitações de faculdades, estudantes de medicina, enfermagem, para virem cá. Já se começa a olhar para a medicina hiperbárica de outra forma”, conclui.