Imigrantes de coração Português

A viver e trabalhar em Baião desde janeiro, Seck não abandona os hábitos muçulmanos, rezando diariamente

Ucranianos, brasileiros, indianos, vietnamitas, senegaleses. Uns chegaram há 20 anos e encontraram um país que os recebeu de braços abertos. Outros são recentes, dormiram na rua, sofreram exploração e deparam-se com a burocracia da documentação. Em comum, um sentimento - sentem-se em casa.

É de sorriso no rosto e num discurso ainda com pouco português, indiferente ao que com apenas 22 anos já teve de enfrentar – de um trabalho difícil de pescador no Senegal à exploração laboral em Beja -, que Mame Mor Seck recorda a mulher e o filho que deixou para trás. Saiu da terra natal, Mbour, há ano e meio, à procura de uma vida melhor, “com mais dignidade”. Entrou na Europa por Espanha, até que, contacto puxa contacto, arranjou trabalho nos campos agrícolas de Beja. As condições eram degradantes ao ponto de o fazerem fugir. Foi subindo o país e acabou sem ajuda e sem abrigo. Durante uma semana, dormiu na estação de camionagem do Campo 24 de Agosto, no Porto. “Era muito frio.” Tem grande dificuldade em falar português ou até mesmo inglês. Mas esforça-se para sublinhar a diferença entre o que passou e como vive atualmente.

Há menos de seis meses, não havia encontrado em Portugal a dignidade que tanto procurava. Que tanto desejava. Muito pelo contrário. No entanto, através do Alto Comissariado para as Migrações, a Vialsil, empresa de reparação e manutenção de vias, soube da situação de Seck e de outro senegalês, Mamadou Diop, que também vinha fugido de Beja, e acolheu-os. Foi assim que, finalmente, o jovem conseguiu encontrar o que tanto ansiava. “Já passou. Agora, aqui, está tudo bem.” Tudo é comida, casa, trabalho, colegas, salário e até os habitantes de Baião, vila do Douro que é sede da empresa e “casa do coração” do senegalês.

O único obstáculo que aponta é mesmo a língua. Benditas tecnologias. A expressão não é dita, mas é sentida. “É o que uso”, ouve-se, num português que vai arranhando juntamente com o inglês enquanto escreve o que quer dizer no telemóvel, para que este traduza. “Diz tu, Paula”, repete várias vezes. A funcionária dos recursos humanos da Vialsil é uma amiga, uma mãe, uma irmã. Com ela, todos se vão entendendo. Não é que Paula Carvalho tenha uma qualquer poção mágica que a faça entender os mais de cinco idiomas e dialetos estrangeiros que atravessam a empresa duriense, mas tem a paciência necessária. A timidez de quem não está habituado a ser ouvido também não ajuda. E sente-se no sorriso nervoso de Seck, ainda que não o confirme.

A Vialsil oferece aos trabalhadores imigrantes as mesmas condições que proporciona a qualquer funcionário português: contrato efetivo, no caso de não ter experiência começa com o salário mínimo, que aumenta logo nos primeiros meses, e hipótese de subir na carreira, além de seguro de saúde e prémios ao longo do ano. Mais do que isso, a empresa é fundamental na fase de transição – a situação atual de Seck e de cinco outros colegas -, na qual os trabalhadores imigrantes recém-chegados são ajudados com alimentação, alojamento e documentação, no mínimo durante seis meses. Para estarem legais têm de ter, pelo menos, a “Manifestação de Interesse”, ou seja, o pedido de autorização para residir em território nacional, requerida no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Dos que, como o senegalês, vieram de trabalhos duros e precários em Beja, nenhum tinha documentação válida. No entanto, com a ajuda da empresa baionense, todos a conseguiram.

Mais do que empregar, integrar

São 94 trabalhadores, 14 dos quais imigrantes. De momento. Sim, porque há sempre vagas na Vialsil, que sofre com a falta de mão de obra, tanto nos cargos mais baixos como nos altos quadros. Paulo Portela, dono da empresa, acredita que a solução é “aproveitar quem vem, aliciar as famílias a virem com eles e trazê-los para o Interior, para se fixarem, dando condições salariais, de saúde e de educação”. O empresário de Baião admite o erro que cometeu há 20 anos, na primeira vaga de imigração, no início do século: “Nessa altura, procurava imigrantes porque a mão de obra era barata, mas isso não era bom e não se fixaram”. “Aprendemos com o erro.” Agora, valoriza todos os trabalhadores por igual.

Jaspreet (à esquerda) e Bihn (no centro) chegaram à Vialsil em 2019 e já se fixaram na região de Baião, focados em ter toda a família junto deles

Para Jaspreet Singh, a história repete-se. Também veio de uma exploração agrícola no Alentejo, onde não aguentou mais de quatro meses. Baixo salário, falta de contrato e de condições de habitação. “Eram muitos homens na mesma casa. Não era vida.” O português ainda não está afinado. Socorre-se igualmente da ajuda de Paula e do apoio do tradutor eletrónico. Mas a verdade é que não foi a língua que o impediu de, em apenas dois anos na empresa, já ter subido de posto e de salário. “Antes servente, agora oficial”, anuncia, com orgulho. “Aqui tenho férias.” Parece banal, mas Jaspreet não estava habituado a determinado tipo de “benefícios”, como dias de descanso, que, em dezembro, até lhe permitiram viajar até à Índia para casar. E o orgulho, mais uma vez visível nas poucas palavras que vai expressando, no rosto e na imagem que tem como fundo de telemóvel – a fotografia dos noivos, com toda a pompa e circunstância que a ocasião exige. A mulher “trata de cabelos, unhas e cores na cara”, vai explicando, pormenorizando com gestos cada uma das tarefas.

A vida difícil que Jaspreet levava na Índia obrigou-o a abandonar o país. Itália foi a primeira paragem. Dedicou-se à restauração. Trabalho duro que não o convenceu. Até que um amigo lhe falou da agricultura em Beja. O desespero empurrou-o para Portugal. Mas ainda não era a sorte a bater-lhe à porta. Foram três meses a “plantar, plantar e plantar”, relembra, repetindo a palavra até à exaustão. Não o expressa em português, não consegue, mas sentiu na pele a dureza do trabalho. E a má remuneração. Agora, a realidade é bem diferente – “Nada é como agora” – e até tem tempo para passear, pela região, pelo Porto. “Gosto, gosto muito.” Aproveita as idas à Invicta para rezar e conviver com amigos compatriotas.

A história de Bihn é diferente. Veio diretamente do Vietname, o país de origem, aproveitando a ajuda de uma associação, que recebeu a proposta da Vialsil. E trouxe a família. A mulher, Huyen, a filha, Uyen, o filho, Bao, e a cadela. “Chama-se Estrelinha, como as que estão no céu”, apressa-se a explicar Huyen, que também já arranjou emprego, num restaurante. Residem numa moradia em pedra, rodeada pelas encostas acidentadas do Douro. A felicidade não é plena. Falta um outro filho para a família estar completa. A cara da mãe, preocupada e de coração apertado, não precisa de tradução. Diz tudo.

Huyen ri. Timidamente. Esconde a cara de quando em vez. Responde a cada pergunta com o pouco português que já conseguiu aprender. Por vezes, auxilia-se do português perfeito dos filhos para perceber as perguntas. E para responder. O coração apertado deve-se ao facto de ter deixado um filho de nove anos ao cuidado da família, acreditando que conseguiria regressar rapidamente para o ir buscar. Só que a documentação tarda em chegar e impede-a de reunir definitivamente a família. Bihn e Huyen não estão com o filho do meio há dois anos. Vale-lhes o telemóvel para matar saudades. “Falamos todos os dias.”

Assentar em Portugal

Deixamos as encostas do Douro e passamos às planícies do Ribatejo. Yulyia Hurlebaus, ucraniana, chegou a Rio Maior em 2000. Nunca mais quis sair. Hoje, com 45 anos, tem a vida estabelecida. Vive com o marido e os dois filhos. A mais velha veio com os pais, tinha sete anos. O segundo já nasceu em Santarém. Mas a história da ligação desta família a Portugal começou por Vladimir, o marido. Trabalhador da construção civil, desde muito novo que se habituou a fazer algumas temporadas fora da Ucrânia. Numa certa altura, essa digressão profissional chegou a Portugal. Gostou tanto do que encontrou que disse a Yulyia, na altura na casa dos 20 anos, que tinha de vir conhecer. “Se gostares, ficamos.” E ficaram. A ucraniana entrou na EnoPort Wines, empresa vinícola, pela primeira vez em 2004, nessa altura de forma temporária, e a proposta de contrato efetivo chegou dois anos depois.

A trabalhar na EnoPort Wines há 18 anos, Yuliya Herlebaus é atualmente chefe da linha de produção

Yulyia não perde tempo. Ainda mal se apresentou e já relata, com evidente orgulho, o percurso que trilhou na empresa. “Foi nesta máquina que comecei.” Agora, é chefe de linha de produção. Está agradecida, de palavra e de lágrimas que escorrem pelo rosto, às pessoas que a ajudaram. O sentimento por Portugal é tal que, garante, hoje é “portuguesa de coração”. Mais. A mesma simpatia que recebeu quando chegou, já lá vão duas décadas, voltou agora a conhecer após a Rússia invadir a Ucrânia. Custa-lhe falar do tema. As palavras saem com dificuldade. São muitas emoções. Conta que tem família que não consegue sair da zona de conflito. “Mas todos me perguntam como eles estão e se preciso de alguma coisa. E isso vale muito.”

Desde 2012 que o número de imigrantes que entram anualmente em Portugal tem vindo a aumentar. Há dez anos, eram mais de 14 mil. Em 2020, foram 67 mil. Ainda segundo os dados do último relatório estatístico anual do Alto Comissariado para as Migrações e do Observatório das Migrações, de 2021, Portugal é o sexto país com o saldo migratório mais elevado. A lista é liderada por Espanha.

Na EnoPort Wines, mais de 18% dos funcionários são imigrantes, alguns fixaram-se na empresa já no início do século, e vêm de sítios tão distintos como Angola, Moldávia ou Paquistão. As condições e a exigência de qualidade de vida para os trabalhadores são semelhantes à empresa de Baião. E, aqui, não chegam estrangeiros apenas para os cargos mais baixos, como Yulyia, mas também para funções técnicas. É o caso de Olena Cherkashya, também ucraniana, a trabalhar em Portugal há 20 anos na indústria do vinho e há seis meses na empresa de Rio Maior, como responsável do enoturismo, área em que se especializou e para a qual estudou já em Portugal, numa pós-graduação feita no Instituto Superior de Línguas e Administração de Santarém.

Olena, que saiu da Ucrânia em direção a Portugal há 22 anos, prepara as visitas do enoturismo, departamento pelo qual é responsável

Randell Paniago, de 31 anos, é outro exemplo. Não foi por questões financeiras que o brasileiro especializado em marketing veio para Portugal. “Lá tinha uma boa condição, mas faltava-me qualidade de vida, saúde e segurança.” Veio atrás de tudo isso e Portugal foi a escolha fácil, pela língua, pelas boas referências que tinha e pelo clima agradável. Apesar de estar cá há apenas dois anos, já subiu de cargo na empresa, tem uma namorada portuguesa, uma casa e quer trazer a família para terras ribatejanas.

“As pessoas não sabem o que estão a dizer quando afirmam que os imigrantes vêm roubar postos de trabalho”, sublinha Paula Faria, diretora-geral da EnoPort Wines. Para a gestora, quando os imigrantes se fixam, “são eles que ajudam Portugal, uma vez que, de outra forma, o país não tem mão de obra especializada” em determinados setores.

Apesar da boa condição financeira, Randell Paniago, de 31 anos, saiu do Brasil em 2019 devido à falta de qualidade de vida e de segurança

Apesar dos casos de exploração, uns mais mediáticos e outros ainda na sombra do desconhecimento, de Rio Maior a Baião, não faltam bons exemplos de integração de imigrantes. Com boas condições, as famílias chegam e fazem questão de assentar em Portugal. Fazer vida neste país que “tão bem sabe receber”, como elogia Olena, retribuindo com trabalho competente. E com “coração português”.