Valter Hugo Mãe

Exposição em Braga


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Escrevi “a máquina de fazer espanhóis” por me agredir o modo como higienizamos a sociedade enquanto exclusiva dos jovens.

Quando, em 2009, entreguei à minha editora o romance “a máquina de fazer espanhóis”, temi haver-me rendido ao meu próprio medo, alheado do que diz respeito ao mundo mais imediato e certamente sentindo que ficaria ao abandono. Julguei que o livro nem venderia nem alguém partilharia comigo a atenção aos mais velhos, à multidão de velhos para os quais parece termos cada vez menos tempo, menos lugar.

Doze anos depois, o livro está na sua vigésima quinta edição em Portugal e merece uma versão especial ilustrada por Juan Domingues, o brilhante artista com um pé nos clássicos e outro no futuro.

Escrevi este romance por me agredir o modo como higienizamos a sociedade enquanto exclusiva dos jovens. A folia da juventude preda-nos a todos, que nos tornamos velhos em pouco tempo, incapazes de corresponder aos padrões físicos, às modas, à festividade sem propósito, a certa demissão. E preda-nos porque tende a atirar os velhos para a institucionalização, vistos como empecilhos à normalidade familiar, como se os velhos e a velhice não fossem normais. Curiosamente, a pandemia, que parece inventada para ser um apocalipse dos velhos, elucidou muita gente acerca de como estamos demitidos ou proibidos de acompanhar aqueles que amamos, mantendo-os no quotidiano das famílias, legítimos, cuidados.

Não tenho os números precisos, mas “a máquina de fazer espanhóis” vendeu em Portugal mais de cem mil exemplares e, para minha profunda alegria, encontrou em tanta gente essa mesma urgência que encontrou em mim. Na verdade, estabeleceu essa necessidade de combate ao abandono e à desumanização que paulatinamente fomos admitindo sem mais sobressalto. Assinalando tão delicada coisa, depois de havermos convidado o Juan Domingues para ilustrar a edição especial do livro, o artista decidiu levantar o volume e expor na Zet Gallery, em Braga, um conjunto de obras de grande dimensão que maturam a sua visão da velhice e dos lares.

“A outra máquina de fazer espanhóis” inaugurou ontem. Estará patente até meados de Março, e é uma abundância impressionante. O Juan Domingues não se poupa. A escala com que normalmente trabalha é uma impiedosa forma de ver e de mostrar, e aquilo que mais o define é a capacidade de conferir vida às figuras, comoventes e emotivas, intensas, absolutamente vibrantes, diante de nós, paradas no desenho ou na pintura como se não pudessem extinguir-se jamais.

Esta é uma festa em honra dos velhos. Uma festa que dignifica a vida como um tempo inteiro, com sua extensão enquanto graça e necessidade. Porque ninguém se deve sentir compelido para o fim. Como são subitamente monumentais aquelas figuras que vemos, inesgotáveis, feitas afinal de uma incrível força, solicitando outra coisa que não socorro. Solicitam identidade. Gente que é um património vasto, narrativas longuíssimas que nos explicariam tudo quanto julgamos saber ou já demos como perdido. Sinto que o Juan Domingues nos trouxe os velhos eternos, porque existe algo de radical consciência do Mundo nos velhos. Uma ciência comum à qual demoramos a aceder. Pobres, muito pobres tanto tempo.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)