Comorbilidades na Tourette: muito mais do que apenas tiques

Considera-se agravamento dos tiques o aumento da sua frequência, uma maior intensidade, a menor capacidade de controlo ou a maior interferência no dia a dia

Cerca de 90% dos doentes com Síndrome de Tourette apresenta, pelo menos, uma comorbilidade. O mês de sensibilização para a doença celebra-se de 15 de maio a 15 de junho.

São berros, rezas, arranhões a si própria. Quando a Síndrome de Tourette se alia à Perturbação Obsessiva Compulsiva (POC), Neuza Vida não sabe como lidar. Os pensamentos intrusivos surgem, sente-se culpada e aumenta a ansiedade. Como uma bola de neve, os tiques aumentam. “É um ciclo sem fim.” E, aos 30 anos, afirma que lida bem com a Tourette, mas, quando a POC se mistura, não é fácil”, nem para ela nem para quem a rodeia.

O que Neuza Vida experiencia são rituais aliados a pensamentos intrusivos, ou seja, os tiques associados ao transtorno da Tourette são exacerbados com as compulsões provocadas pela POC. Uma combinação, diz, desgastante. Foi diagnosticada com Síndrome de Tourette aos 18 anos, após o aparecimento de pensamentos que classifica como “macabros”. “Se não fores contra aquela parede dez vezes a tua mãe morre ou a tua irmã é violada.” O cérebro repetia constantemente afirmações semelhantes, que levavam a que os tiques se descontrolassem. Gritar sem razão aparente, dizer palavras sem sentido, muitas delas obscenas, fazer rituais antes de dormir. A vida de Neuza foi, desde cedo, marcada pela combinação da Tourette com a comorbilidade mais forte que apresenta, a POC.

Quando se fala em Síndrome de Tourette fala-se, na maioria dos casos, em outras doenças associadas. 90% dos doentes com esta perturbação não a têm no estado “puro”, ou seja, apresentam, pelo menos, uma comorbilidade. As mais frequentes de acontecerem em ligação com a Tourette são a Perturbação Obsessiva Compulsiva e a Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção (PHDA). Quem realça estes dados é Ana Araújo, psiquiatra e elemento da direção da Associação Portuguesa de Síndrome de Tourette (APST), que afirma que ambas as doenças são diagnosticadas em cerca de metade dos doentes de Tourette. E apesar de a “doença dos tiques” ser, nestes casos, o quadro principal, a comorbilidade – doença que acontece simultaneamente com uma outra – tem importância para o doente ao nível do diagnóstico, da avaliação clínica e da escolha de tratamento.

Importância do diagnóstico acertado

“No diagnóstico é importante ter a ideia da comorbilidade, caso contrário, podemos diagnosticar uma pessoa com uma perturbação primária errada”, começa por alertar Ana Araújo, referindo o diagnóstico errado como impactante, principalmente, na seleção do tratamento mais adequado. A Interna de Psiquiatria no Centro Hospital e Universitário de Coimbra e assistente convidada na Universidade de Coimbra, explica que “quando existe uma POC ou défice de atenção que não estão tratados é frequente o agravamento dos tiques”.

Considera-se agravamento dos tiques o aumento da sua frequência, uma maior intensidade, a menor capacidade de controlo ou a maior interferência no dia a dia. E estes são os sinais a que se deve estar atento para que um doente de Tourette identifique possíveis comorbilidades. “Importa não apenas olhar para aquilo que se vê, mas também tentar desvendar quais os pensamentos, emoções ou sensações que levam aquela criança ou adulto a realizar determinados comportamentos repetitivos.”

Em casos como o de Neuza Vida, em que a Tourette acontece em associação com a POC, o tratamento de ambas as perturbações de forma separada complementa-se. A nível farmacológico, as medicações “não só podem ser combinadas, como, devido ao seu perfil farmacológico de atuar em recetores complementares, potenciam-se”. “Já o tratamento psicoterapêutico envolve tipos específicos comuns de terapia”, como a terapia de reversão do hábito, por exemplo. O método utilizado para a POC é semelhante ao da Tourette, “porque fazer uma compulsão também é um hábito disfuncional”. No entanto, a sinergia que acontece no tratamento da POC e da Tourette não acontece no caso de outras comorbilidades, como é o caso dos doentes de Tourette com PHDA, em que a medicação eficaz para ambas as doenças é mais difícil de alcançar.

A temática das comorbilidades é frequentemente abordada pela especialista Ana Araújo. Recentemente orientou uma tese de mestrado que procurava perceber de que forma o período de pandemia e de isolamento social poderia ter piorado os sintomas de doentes de Tourette com comorbilidades. O estudo revelou que “cerca de metade das pessoas ou pais das pessoas sentiram que os tiques agravaram. A outra metade, na maioria, disse que se mantiveram”. Mas a psiquiatra sublinha duas situações específicas em que a covid-19 resultou no agravamento das doenças: a perturbação da acumulação – devido à necessidade de comprar produtos em grandes quantidades – e a hiperatividade – porque, fechados em casa, os doentes ficam sem estratégias para regular este problema.

Aprender mais sobre a Tourette

Para combater a falta de informação e a desinformação, vistas por Vasco Conceição, vice-presidente da APST, como os dois principais problemas em torno da doença, a associação marcou entre 15 de maio e 15 de junho o mês desta síndrome. “Sensibilização da Tourette” apresenta, este ano, a temática “novas perspetivas”, onde os dirigentes e convidados tentarão “ir a alguns temas atuais e contextualiza-los”. A prevalência de comorbilidades foi um dos webinars apresentados. Mas há outros temas, dos quais Vasco Conceição destaca a “distinção entre tiques funcionais e síndrome de Tourette”, importante devido ao fenómeno da Internet de “banalização” de sintomas, que leva a um conhecimento inexato sobre a doença.

Todos os webinars apresentados pela APST estão disponíveis na página de Facebook da associação. A 14 de junho acontece a última apresentação, com uma temática que, diz Vasco Conceição, foi sendo pouco explorada em anos anteriores. Para o encerramento do mês da sensibilização, o tema será “Novas perspetivas na Síndrome de Tourette: E a família? Desafios e perspetivas de suporte à família”, onde se abordará a ligação familiar com a doença.