Valter Hugo Mãe

As pessoas todas


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Curioso como nem a extrema tragédia irmana as pessoas. Nem no fundo do poço se tornam iguais.

Quando, há dias, ouvi o actor e activista Manuel Moreira alertar na televisão para o facto de a comunidade LGBTI na Ucrânia estar a ser rejeitada para as comissões de socorro, especialmente as pessoas transexuais, admito que ainda não havia ponderado qualquer perversão na boa vontade de salvar quenquer que seja. Subitamente, estão por toda a parte as notícias de que são deliberadamente preteridas também as pessoas negras ou asiáticas, que são obrigadas a descer das caravanas solidárias, dando lugar a pessoas brancas cuja aflição comove a extrema-direita que parece gerir o terreno. Em alguns relatos, teme-se que toda essa gente fora do padrão-preconceito esteja não só a ser abandonada como simplesmente sentenciada, abusada, colocada na linha da frente para morrer. O asco, que vinha desse gesto assassino de Putin, passa a vir de toda a parte.

Curioso como nem a extrema tragédia irmana as pessoas. Nem no fundo do poço se tornam iguais, semelhantes em suas dores, absolutamente pares no objectivo fundamental de sobreviver.

A Ucrânia está ainda distante da legitimação cabal da mudança de género, pelo que a documentação das pessoas transexuais se torna essa ilustração equivocada de cada uma, favorecendo a humilhação e a dúvida. Nestes casos, ainda atirados para existências marginais, quem procura ajuda parece alguém remoto, alguém que tem prova de haver existido no passado e não inteiramente no presente. Como se fossem pessoas desaparecidas para dentro de si mesmas, devoradas pelo necessário sonho que agora não encontra respeito. Não encontra compaixão.

Sei bem que a guerra que a Rússia horrendamente faz à Ucrânia é toda ela a suspensão da decência, da humanidade, mas importa muito a toda a hora reivindicar uma resistência digna, um modo de ter esperança numa Ucrânia que seja de verdade lugar de paz e justiça para todos, e não para alguns eleitos, sejam eles quais forem. Assim, parece-me urgente que comecemos a exigir salvação para negros e asiáticos, salvação para a comunidade LGBTI e todos os demais que se tornem vulneráveis à vista feia dos preconceituosos, outros assassinos.

É fundamental que, à vinda dos refugiados, seja reclamada a inclusão obrigatória dos que mais estão a padecer, para que se saiba que importa salvar todas as pessoas. Todas as pessoas. Quero, sim, ver as organizações mundiais a criarem esforços suplementares para o resgate destas comunidades. Se o terreno lhes oferece maiores perigos, o Mundo precisa de responder com maior cuidado, maior atenção.

Sempre contra Putin, também contra todos quantos transformam esta porcaria numa oportunidade de matar mais, limpar etnicamente os territórios, punir quem não tem nada que ser punido. Estão pela Internet os dados das organizações que, dentro da Ucrânia, arriscam tudo para salvar as comunidades minoritárias em maior perigo. É urgente que lhes demos também apoio e que criemos eco dessa necessidade. Para que a invasão criminosa da Ucrânia não resulte, ao mesmo tempo, numa exploração torpe da nossa ingenuidade e imprudência.