Afasia, o problema que acabou com a carreira de Bruce Willis

Joaquim Silva esteve meses sem falar na sequência do último AVC que sofreu. Com fisioterapia e muita força de vontade, consegue ter uma vida normal, apesar da afasia

É uma perturbação da linguagem provocada por uma lesão ou doença no cérebro. A comunicação não acontece e o impacto é tremendo na vida pessoal, familiar, profissional. Que problema é este que Bruce Willis tem? É um sintoma, não é uma doença.

Joaquim Silva tem 60 anos, o braço direito ligeiramente afetado devido a um acidente vascular cerebral (AVC) que lhe perturbou a fala. Esteve meses sem falar, sem comunicar, foram tempos complicados. Reagiu. Hoje, reformado por invalidez, conduz, vive sozinho, trata das tarefas de casa, vai às compras, ao café, à fisioterapia dois dias por semana, ao Instituto Português da Afasia (IPA) três vezes. Tem afasia e faz uma vida normal. A sua história é um exemplo de superação.

No início da conversa, avisa que tem dificuldade em falar e em compreender, a afasia trava-lhe a saída de algumas palavras que saem mais devagar para construir frases. Pede tempo e paciência, é o que sempre faz com quem quer comunicar e não sabe o que lhe aconteceu. “Dois anos depois do AVC, não admitia e não aceitava o problema. Depois, devagarinho, descobri o IPA, frequento o IPA que mudou a minha vida, recuperei o ânimo e comecei a acreditar.”

Em julho de 2016, Joaquim Silva foi passar férias à terra natal, Santa Maria da Feira, ao casamento do filho, fechou temporariamente a sua pizaria na Madeira. Nessa altura, teve um AVC, dois meses internado. O historial é pesado: cinco enfartes e quatro AVC nos últimos 11 anos. “Sou um sobrevivente”, diz.

Não conseguir dizer uma frase completa, misturar palavras, não comunicar bem, não compreender. A dificuldade de nomear objetos, ter dificuldade em explicar o que se quer dizer, querer um copo de água, por exemplo, e não conseguir pedir. “A afasia é um sintoma que, no fundo, corresponde a uma alteração da linguagem”, descreve Cátia Carmona, médica neurologista no Hospital Lusíadas da Amadora e no Hospital de Cascais. “A afasia é um sintoma que resulta de várias doenças, não é uma doença em si.”

No final de março, o Mundo ficava a saber que o ator Bruce Willis, de 67 anos, sofre de afasia que afeta as suas capacidades cognitivas. É o ponto final na sua carreira. A família do ator usou as redes sociais para anunciar essa retirada numa notícia emotiva.

A afasia acontece quando há uma lesão no centro da linguagem que, na maioria das pessoas, fica no hemisfério esquerdo do cérebro. Um AVC, um tumor, uma doença neurodegenerativa, demências. “A afasia, em si, é um sintoma que pode fazer parte de uma doença neurodegenerativa”, adianta Cátia Carmona. Regra geral, nos adultos, resulta de lesões adquiridas; nas crianças de alterações no desenvolvimento. E perceber a causa é essencial.

O AVC é a principal causa de afasia. Um dos três alertas do AVC é precisamente a perturbação da fala, deixar de falar corretamente. Elsa Azevedo, médica neurologista, diretora de serviço de Neurologia do Hospital de São João, no Porto, entra no cérebro para lembrar que é ali que se descodifica a linguagem. As ideias transformam-se em palavras, se há uma lesão na zona da linguagem, a comunicação é afetada. “Pode afetar a linguagem de uma forma global, não se consegue falar, nem se percebe o que é dito por palavras”, comenta. Se o AVC tapa a artéria para a área da linguagem, a afasia manifesta-se. Na afasia motora, as pessoas não falam, mas entendem. Na afasia sensitiva, falam, mas não compreendem as palavras. Na afasia global, as duas coisas.

O tratamento depende de vários fatores. “Se se sobrevive ao impacto inicial de um AVC, depende do tamanho da lesão. Deverá ser feita uma reabilitação, um treino para tentar recuperar o que se perdeu”, sublinha Elsa Azevedo. Um traumatismo craniano, uma lesão infecciosa, um abcesso na zona da linguagem, uma doença neurodegenerativa também podem causar afasia.

Frustração, vergonha, isolamento

O último AVC virou a vida de Joaquim Silva do avesso. “Os primeiros tempos foram complicados, faltava-me trabalhar, faltavam-me os contactos com os clientes, com os empregados. Tinha uma vida ativa, comunicativa, de convívio, alegre. Depois, a quebra total”, recorda. Contudo, não gosta de desistir. “Insisti muitas vezes, dizia vou caminhar, vou recuperar todos os dias e vou conseguir com muita coragem, muita persistência, muita teimosia.” O IPA ajuda-o a ultrapassar as condicionantes da afasia. A família e os amigos já sabem o que fazer. “Com as pessoas que não conheço, digo que tenho afasia, que tenho dificuldade em falar e em compreender, peço para falarem devagarinho, peço ajuda quando não percebo. Normalmente, consigo tudo.”

Demência é uma coisa, afasia é outra, mas há pontos em que tocam. A afasia progressiva primária vem de uma doença neurodegenerativa caracterizada por um quadro de demência progressiva que, desde o início, altera as funções da linguagem. Na doença de Alzheimer, a memória altera-se e, com o evoluir da doença, a afasia pode manifestar-se. “Em alguns tipos de demência, a afasia pode ser o primeiro sintoma, até antes da alteração da memória”, refere Cátia Carmona.

A afasia mascara competências, afeta relacionamentos e atividades, influencia o modo de estar, o acesso a informações e serviços. A vida pessoal e a situação profissional ressentem-se devido à dificuldade em comunicar. Assumem-se outros papéis no seio familiar, torna-se difícil manter o emprego ou retomar o trabalho. “As pessoas com afasia sentem que os outros lhe retiram competências, colocam em dúvida as suas capacidades, muitas vezes, isolam-se, basta ficarem caladas”, salienta Paula Valente, terapeuta da fala, diretora-executiva do IPA, estrutura que dá apoio a pessoas com afasia, aborda o problema e seu impacto em todas as suas dimensões, disponibiliza treinos de comunicação para familiares e amigos.

“A perda de autonomia é bastante marcada, varia de acordo com o tipo de afasia, gravidade e evolução”, acrescenta Paula Valente. Perdem-se funções, a rede de contactos diminui, as pessoas não sabem lidar com a situação, têm vergonha, sentem-se frustradas. “E quanto mais letrada e diferenciada é a educação, mais difícil é assumir esta situação.” Em trabalhos em que o domínio da linguagem e da escrita é fundamental, a afasia é um entrave. “O desemprego marca bastante estas pessoas.”

Um estudo nacional indica que 76% das pessoas com afasia crónica sofrem de depressão. A autoestima e a motivação não passam impunes. A diretora-executiva do IPA conhece bem essas circunstâncias. “A afasia, na maior parte das pessoas, é uma condição crónica. Na maioria das situações, as sequelas, em maior ou menor grau, vão-se manter para toda a vida.” A reabilitação ajuda, recuperam-se competências.

Os tratamentos encontram-se sobretudo em contexto clínico e hospitalar. Paula Valente faz vários reparos: “Os profissionais são pouco especializados, não sabem comunicar com pessoas com afasia, e os recursos são escassos. As estratégias que facilitam a comunicação existem, mas não são usadas”. “Temos boas respostas na fase aguda, no pós AVC, e más na fase seguinte”, observa. Ou seja, muitas vezes, passam-se meses sem ajuda para minimizar o grau de afasia. “O país não tem uma resposta adequada do ponto de vista de reabilitação.” E a retoma da autonomia e dos papéis sociais, familiares e profissionais, demora. O IPA quer, por isso, angariar fundos, através de projetos, mecenas, candidaturas a fundos comunitários, para capacitar as organizações de saúde e seus profissionais para este problema que condiciona a vida de mais de 40 mil portugueses.

Factos e números

40 000
Em Portugal, vivem mais de 40 mil pessoas com afasia. A cada ano, surgem cerca de oito mil novos casos devido ao AVC.

Não há uma prevalência de género e de faixa etária. No entanto, a probabilidade de ter um AVC, uma doença neurodegenerativa ou uma demência aumenta com a idade.

76%
das pessoas com afasia crónica sofrem de depressão, segundo um estudo nacional

O que fazer?
Não excluir das conversas, dar tempo e atenção, incluir outras formas de comunicação (gestual, por exemplo), não usar linguagem infantil, não corrigir o discurso. Nunca esquecer as dificuldades e os entraves com que uma pessoa com afasia se debate.

App Afasia IPA
É um aplicação móvel, gratuita, para pessoas com afasia. Facilita o processo de comunicação, aumenta a dinâmica social. Contém informações, um cartão de saúde personalizável, imagens e fotografias que funcionam como suporte comunicativo. Uma app criada pelo Instituto Português da Afasia em parceria com o Instituto Nacional para a Reabilitação.