Valter Hugo Mãe

A guerra


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Este é o momento ideal para oportunismos vis, é o momento perfeito para guerras que redefinam os poderes de imperialistas incuráveis.

À distância a que preciso de antecipar a minha crónica torna-se difícil ponderar sobre a pressa da actualidade, uma vez que aquilo que se sabe a uma quarta-feira é largamente obsoleto no domingo seguinte. Contudo, jamais será obsoleto o asco pela guerra, a elementar rejeição da prepotência de querer subjugar outros povos pelos seus corpos ou pelos seus territórios. Putin, hoje uma espécie de fascista bizarramente de costela comunista, propõe ao Mundo ser o novo facínora, aquele que outra vez se investe do delírio desumano para ficar na História dos podres.

O Mundo está letárgico. A pandemia vem esgotando as pessoas e a esperança numa retoma da normalidade é o foco de qualquer cidadão. Os governos desenham todos os futuros, já exaustos de todas as maneiras e, como sempre se avisou pela memória de outras depressões mundiais, este é o momento ideal para oportunismos vis, é o momento perfeito para guerras que redefinam os poderes de imperialistas incuráveis.

Por infelicidade, recentemente estive em dois funerais e o desalento é inesquecível. Além da perda de alguém sobra a impressão de se falhar, como se a morte pudesse ser adiada e chegasse exactamente pela falta de um sistema de cuidado infalível que nos pouparia a todos de sermos tocados pelo monstruoso vírus. Neste quadro de pena e ideia de culpa, ninguém é bravo guerreiro. A vulnerabilidade é humilhante e a cidadania basta-se com sobreviver em silêncio e pouco mais. O que importa, pois, aos que só querem saúde? Aos que querem os seus entes queridos vivos e protegidos? Que força terão contra quem se preparou para matar por vontade própria, acima do que morrem os azarados, os que não puderam evitar adoecer?

Andam as pessoas a fazer contas a uma guerra só aparentemente distante que promete acabar com a economia. A especulação já vinha acabando com muito da economia, a pouca vergonha de tantos impostos também jamais ajudará, mas a guerra é hoje ubíqua no que respeita a seus efeitos. Se a Ucrânia for atacada estaremos todos na radial refracção desse ataque e veremos todos nossas vidas suspensas como a pandemia também já tanto suspendeu.

Quando estive na Ucrânia comprei uma figura de um menino segurando uma borboleta. Disse-me o senhor que era uma porcelana do tempo soviético que representava uma personagem de um conto infantil que aprendera que para amar a borboleta precisava de manter a mão aberta para deixá-la partir. Aquela porcelana representava uma silente resistência ucraniana à ocupação russa. Os russos nunca o entenderam. Julgaram que o popular menino da borboleta era apenas um fanico poético do povo ocupado. Quem me vendeu aquela figura muito me assegurou que a Ucrânia jamais será russa. Por dentro do povo há uma mágoa tão grande que com qualquer pouco de ar se transforma em orgulho. O orgulho não permite que o povo aceite a ocupação. Não vai aceitar nunca.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)