Valter Hugo Mãe

Saber nada


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

A dada altura, contudo, foi-me criada a curiosidade de saber sobre a origem específica daquele artefacto, um pequeno objecto de plástico esverdeado que costumava luzir no escuro e que vem desde os anos 1970 comigo.

Escrevi, por diversas vezes, sobre uma figura de Cristo que recolhi algo inadvertidamente de uma pilha de lixo quando era muito criança. Por toda a vida, essa figura esteve em minha casa como uma universalidade de um homem sobre o qual mais imaginamos do que sabemos, e pelo qual mais espoletamos emoções do que conhecimento. A dada altura, contudo, foi-me criada a curiosidade de saber sobre a origem específica daquele artefacto, um pequeno objecto de plástico esverdeado que costumava luzir no escuro e que vem desde os anos 1970 comigo. É coisa pouca para uma figura de símbolo absoluto de espiritualidade, uma figura complexa que fabricante algum pode verdadeiramente assinar. Mas eu desenvolvi uma poética vasta em torno da minha relação com esta imagem e saber algo sobre seu percurso parece reconstruir uma fortuna íntima.

Também é verdade que, quer Deus exista quer não, me convenci que em muitas ocasiões este específico Cristo me acudiu, nem que por minhas próprias ilusões, pela sanação inexplicável de certa fé, mormente fé na coisa cabal de haver mais um dia, haver futuro. No tempo, nunca estamos encurralados. Ele abre caminho à revelia de todas as clausuras. E eu escapuli tantas nem que apenas pelo tempo fora.

Há umas semanas, a minha amiga Lourdinhas, que em algumas ocasiões se alojou em minha casa, veio de Lisboa com uma surpresa em mãos. Encontrara numa feira de trastes, por quaisquer cinquenta cêntimos, uma figura igual à minha, a mesma coisa, mas menos batida pelo tempo, com as pinturinhas ainda vivazes, as vestes menos roídas, a base inteira onde se lê, num autocolante sem luxo, a designação: “Cristo Rei”.

Quando era menino, a caminho das raras férias no Sul, parava com meus pais e irmãos no Cristo Rei. Pensávamos como era incrível ser tão alto, que medo subir-lhe aos braços, que magnífico que visse à distância a imensa e bela paisagem de Lisboa. Nunca mais ali voltei. Por toda a vida, aquele lugar virou um passado esdrúxulo que se ostenta na margem do Tejo, como uma certa morte sem terra, uma morte dessa infância e do meu pai. Ao seguir para a margem Sul, eu sempre deito meus olhos ao gigante sereno que não sabe que nós vamos acabando, nossas vidas vão acabando e em parte ele é símbolo disso.

Hoje, por valentia e por poética, vou a caminho de Almada. Quero ver que coisa há ali que me possa ainda servir de pai, de infância, de alegria, de maravilha, nem que magoe, como podem magoar todos os pais quando morrem, as infâncias quando passam, as alegrias se acabam, as maravilhas que são cada vez mais fugazes. Mas, vou.

A Lourdinhas trouxe a pista e eu não seria quem sou se não fosse ver de perto, saber de perto porque tenho medo e fascínio ao mesmo tempo.

Já vemos à distância como ali está. Igual. Não sabe que o meu pai morreu. Parece que não sabe nada, nem descer os braços para tomar nosso corpo por um instante. Mas também não sei nada. Somos iguais.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)