Valter Hugo Mãe

Palhaços


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Quem sou eu, tão pequeno e imprestável, comparado com o tamanho de alguém a criar o sorriso de uma criança na doença e até junto da morte?

Convidaram-me para uma roda de conversa via zoom com um colectivo de gente ligada à Operação Nariz Vermelho e aos Doutores Palhaços. Em muitas situações da minha vida sinto que sou convidado a desempenhar um papel que não mereço e me vejo como um embuste. Falar para pessoas cuja bravura consiste em fazer sorrir até crianças hospitalizadas, tantas em estado terminal, é como entreter os deuses com gracinhas. Que raio haveria eu de saber que aproveite a alguém que leva a cabo algo assim? Quem sou eu, tão pequeno e imprestável, comparado com o tamanho de alguém a criar o sorriso de uma criança na doença e até junto da morte?

Julgo que foi dos nervos que me pus a falar sem parar quando começámos. Quando fico com medo e não sei o que fazer, sigo palavras e espero que elas sejam iluminação, a boca é meu candeeiro, no seu céu vai um sol, eu não consigo mais usar os olhos, o caminho é a imaginação. Digo que só sei pensar aquilo que sinto. Comecei a falar sobre isso. Só sei pensar aquilo que sinto. Talvez conte coisas mais íntimas, mais estranhas e inesperadas.

Conheço o Luís Almeida do café onde vou há muitos anos. Conheço-o com seu sorriso fácil, um jeito quase menino de quem está sempre pronto para brincar, a bem, a gostar de estar ali, gostar de estar com os outros. Ser-se palhaço é inusitado mas há um colectivo em Vila do Conde e habituamo-nos a saber das suas artes muito fora do circo, muito junto da vasta comédia e do mais vasto teatro. Eu sabia que o Luís era um actor que se especializara enquanto artista palhaço, o que eu não sabia era que virara “Doutor” e enfrentava as crianças cujos espíritos só se atendem por uma capacidade de criar alegria mesmo que em cima da pior tragédia. Subitamente, já não sei dizer nada ao Luís. A sua experiência com a vida é muito mais por dentro do absurdo, do profundo mistério, do que a minha. Os deuses têm de ser mais parecidos com ele do que comigo. Não somos todos à mesma semelhança do Criador. Alguns de nós existimos como um esboço ligeiro e talvez procuremos definir a forma, conquistar a cor, aprender um gesto que coincida com o rigor que se esperaria do esplendor da essência humana.

O acolhimento que Iêda Oliveira fez da minha pessoa deixa-me grato e comovido. E saber que os meus livros aproveitam a quem busca razões para lidar com a tristeza a partir de uma necessária opção pela alegria faz-me sentir um orgulho infinito. Mas sou o guerreiro frágil. Aquele que guerreia longe e solitário, sem encontrar quem quer salvar, sem me deparar com o verdadeiro inimigo. Sempre absorvo demasiado o sofrimento dos outros. Querendo ajudar, também preciso de fugir. Sou imaturo. A minha gratidão a quem cuida de alguém é absoluta. Vocês são a lição em que mais acredito. Aquela que mais quero aprender.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)