Valter Hugo Mãe

O amor e as aranhas, as cobras e os cães


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Nas terras de Coura tudo propende para ser pouco explicado porque nada teme o seu próprio mistério.

No domingo passado, à noite, na Estrada Nacional 303, na curva da capela do Senhor do Amparo, um casal dançava ao som da música que vinha do carro deixado de porta aberta. Estacionados na paragem das camionetas, os dois agarravam-se com uma ternura que me deixou feliz. Por que razão haveria eu de ficar feliz pelo amor de alguém que não conheço e sobre quem não sei nada? Porque sim. Só os brutos não celebram o amor em toda a parte, todo o amor, o seu glorioso acontecimento num Mundo desafiante que nos preda.

Viver em Paredes de Coura altera-me. Tenho pena das tantas cobras esmagadas nas estradas pela tarde, quando o sol queima. Alguém me diz que se movem muito no calor e as estradas são travessias de morte. Ficam bizarras. Lamento-as.

As estradas cicatrizam nas montanhas. Cortadas entre as matas densas, fulgurantes de Natureza, elas são um golpe seco cujo fluxo tem também algo de terrível. Os animais desentendem como caminhamos, como alteramos tudo para caminhar.

Cheguei a casa e contei 23 aranhas no tecto da pequena sala. Eram umas poucas há dias, pequenas, magrinhas, pensei que não deveria interferir. Subitamente, multiplicaram-se e algumas cresceram, pareciam caranguejos pelos cantos. Considerei demasiado. Passei ontem quase duas horas, com o medo que lhes tenho mas também por compaixão, a descê-las dali para um balde e a ir atirá-las ao campo do vizinho.

Nas terras de Coura tudo propende para ser pouco explicado porque nada teme o seu próprio mistério. Como ficar a almoçar na esplanada do restaurante Miquelina e reparar na quantidade invulgar de homens coxos. Nos primeiros dias, julguei tratar-se do mesmo indivíduo. Com o tempo, reparei que são vários. Uma perna direita e a outra com alguma lesão.

Sonhei que havia 23 coxos em Coura e que todos se deitavam ao Sol no campo do vizinho. De cada vez que um entendia ter ficado moreno, levantava-se, agradecia a companhia aos outros e despedia-se no modo mais carinhoso e típico daqui: olha, fodei-vos, que eu já estou despachado.

Estiveram uns cães a ganir para muito depois do arvoredo. Dizem-me que pode ter andado por ali um lobo. Em certas alturas, os cães latem por toda a parte. São os gatos ou os coelhos que os enfurecem, chegam a estar noite inteira numa berraria contínua. Meti-me no carro para ir ver que era, talvez para afugentar os predadores, mas não entendi como chegar. Para qualquer lado que virasse, o ruído era igual. Sonhei que os cães latiam, afinal, no meu peito. Não os pude ajudar.

Fui estacionar na mesma curva do Senhor do Amparo e saí do carro a ouvir o Requiem do Verdi, aquela “Tuba Mirum” que me dá sempre impressão da chegada triunfante de Deus sobre as almas que partem, e não seria capaz de dançar mas entendi que aquele lugar, como todos nas estradas de Coura, era perfeito para, subitamente, amar alguém. E eu amei toda a gente e todos os bichos. Só não entendo de onde vieram as três aranhas que já me nasceram no tecto da sala outra vez.

Fui à varanda ver a escuridão e passou um coxo pela estrada fora. Foi lento, tive medo que pisasse uma cobra, que viesse o lobo. Não teria como correr. Tudo me aflige.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)