Novas cidadanias
Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.
É explícito que nós somos o produto que as redes vendem. Vendem-nos. Estamos como carne virtual ao dependuro nesse talho sempre mais agressivo que é a vastidão da Internet.
Julgo que ansiamos todos por novas plataformas virtuais onde possamos estabelecer modos de cidadania distintos, semelhante a emigrarmos de alma de um lugar para outro melhor. Habituados a esses espaços de edição, onde nos tornamos todos emissores erguidos finalmente no aparato de uma voz, é praticamente impossível imaginar o regresso ao tempo do anonimato puro, que hoje parece impotência pura, um silenciamento quase insuportável para gerações cuja identidade colectiva já se define pela explosão da informação. Fora da informação não se existe, não se importa para a avidez da contemporaneidade.
Fomos chegando às redes sociais passo a passo, com desconfianças mas atraídos pela magnífica facilidade do contacto. Subitamente, abriu-se uma praça mundial onde o encontro com o vizinho do lado ou com o mais distante dos ermitas se simplificou quase obscenamente. Reatar relações, estreitar relações, inventar relações passou a ser a ordem superior do dia e todos nos pudemos sentir no centro do Mundo. Em qualquer parte estamos em toda a parte.
O entusiasmo de habitar o Facebook ou o Instagram, o WhatsApp ou o TikTok, decai drasticamente pelo advento do ódio nosso de cada dia, pela manipulação cada vez mais insuportável dos nossos dados, pela promiscuidade com políticas totalitaristas que exponenciaram a mentira para fins de domínio criminoso dos Estados e dos mercados. Queremos estar nas redes, sabemos bem que vantagens trazem, mas perdemos a ingenuidade. É explícito que nós somos o produto que as redes vendem. Vendem-nos. Estamos como carne virtual ao dependuro nesse talho sempre mais agressivo que é a vastidão da Internet.
Mas, começava eu por dizer, ansiamos por uma plataforma nova que seja como um país prometido para o qual possamos emigrar quase euforicamente. Todos concebemos como seria esplendorosa essa praça mundial onde houvesse decoro e disciplina, respeito e cultura, verdade e criatividade, liberdade, sonho e pessoas amadas e para amar. Uma praça limpa onde nos pudéssemos apaixonar e seguir em direcção à felicidade.
De vez em quando, surge uma aplicação nova que parece propor-se a corrigir a tirania para que sucumbiram as anteriores. Agora, é a vez do Clubhouse, para onde estão a correr os entusiastas do costume. Os primeiríssimos de sempre a criar conteúdos e a fazer multidão. O que nos motiva a esta corrida? Acreditaremos porventura que ali chegarão apenas os porreiros, os muito espertos, os educados e nunca coniventes com extremistas? Ou será que já aprendemos que as plataformas sociais são de uma alegria breve, uma certa maravilha inicial que acaba quando se popularizam entre 8 e os 80? Talvez seja isso. Emigramos para esses países virtuais onde estaremos numa cidadania que já se sabe nómada, meio vampírica, a consumir tudo que possa até partir de novo, rumo a uma utopia em que ninguém mais acredita. Corrompidos os lugares, temos nenhuma capacidade para os regenerar. Simplesmente partimos, demitidos de tudo. Agora e depois, e depois.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)