Valter Hugo Mãe

Lugares depois da pandemia


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

O aeroporto é a travessia de um campo minado. Qualquer erro, sentimos ser atingidos. O vírus está em toda a parte. Algumas pessoas chegam a baixar a cabeça como se fossem por trincheiras, lugares de tiro, lugares de guerra.

A Dinamarca decidiu estar depois da pandemia. Fala-se na higiene social e no fricote geral como uma coisa a dar em países estrangeiros como se fosse uma desgraça cultural, algo específico de outros sistemas sem tanto afinco social, tantos impostos e amor pelo Estado. A Dinamarca ama-se com sua calma e encanto. Copenhaga mantém-se parecida a uma capital de fantasia, como se fosse para princesas e fadas, renas e milagrosas borboletas. As coisas cintilam e os velhos sorriem. Eu, como toda a Humanidade com esperança, adoro esta cidade.

Saí do Porto com mil cuidados, cheio de solicitações de distanciamento, máscara poderosa, alerta aos outros pior do que na “batalha naval”. Passei por Madrid onde se adensam os medos, com o aeroporto transformado num certo filme, a pandemia e a paranóia, a azáfama de ter cinquenta minutos para sair de um avião e descolar noutro mantendo o ritmo lunar das forças sanitárias metidas em fatos especiais. Códigos electrónicos, perguntas, bilhetes na mão, passaportes, máscaras, duas máscaras se possível, não usar os elevadores, por favor, descer, não entrar no trem interno se estiver com metade da capacidade. Mostrar o autocolante que nos deram. Esperar. O aeroporto é a travessia de um campo minado. Qualquer erro, sentimos ser atingidos. O vírus está em toda a parte. Algumas pessoas chegam a baixar a cabeça como se fossem por trincheiras, lugares de tiro, lugares de guerra.

À chegada à Dinamarca pedem que não usemos máscara em situação alguma. Nem dentro dos táxis nem nos elevadores. Se insistirmos, voltam a pedir. As máscaras assustam a população local. Melhor que não usemos. Um amigo diz-me que deverão estar internadas com covid cerca de dez pessoas em todo o país. Não se justificam restrições por uma maleita tão residual. Importa focar na gripe. Importa focar na normalidade. A normalidade é o grande desafio do país feliz, o país educado que fez com que toda a gente vivesse numa paridade de bem-estar impressionante.

Todos explicam que o sucesso dinamarquês está num Estado de confiança. Os mais altos impostos para os mais rigorosos investimentos, sem corrupção, sem deslumbres ou vaidades. Ser dinamarquês implica um pudor extremo com a coisa comum, um socialismo rico que funciona a favor de todos sem tretas. Não se constroem estradas desnecessárias, não se descuram os hospitais, todo o ensino público é grátis e garantido, só não estuda quem não quer. Quem entender completar a sua formação em escolas estrangeiras, o Estado paga, propinas e bolsas de residência. Não há limite perante a formação. O povo quer-se culto, especializado.

Ponho-me na praça a ver se caso. Quem quer que me queira me vai convencer. Há algo nestas casas aquecidas, brancas por dentro, sem tralhas, que me atrai como um pensamento desimpedido. Juntando a isso o estarmos depois da pandemia, sem mais assombro, já não quero voltar ao Porto. Prefiro ficar aqui de penetra. A temporada de ópera abre mais adiante. Seria um mimo viver dinamarquesmente por um tempo. Subitamente, parecemos entender tudo acerca de como envelhecer.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)