Gente que vive sozinha e é feliz

"Vivo sozinha e não me sinto só", garante Isabel Pinto. "Tenho um equilíbrio na minha vida, as coisas de que preciso" (Foto: André Rolo/Global Imagens)

Não é uma estranha forma de vida. É uma forma de estar na vida. Com espaço, sossego, privacidade, à-vontade, sem regras e rotinas dos outros - e com altos e baixos, como é normal. Quem assim está fala de liberdade, não de solidão.

João Urbano é economista, tem 33 anos, trabalha na área de exportação de vinhos e bebidas espirituosas, vive sozinho há quase seis anos numa zona sossegada, num bairro residencial e familiar, no Porto. “Fruto do acaso”, diz. Saiu de casa dos pais, em Viana do Castelo, para estudar na universidade e nunca mais voltou a morar na terra natal. Durante alguns anos, partilhou o apartamento com a irmã, que também estudava no Porto. Ela acabou o curso e, entretanto, saiu. João ficou e deu um jeito ao T1.

“Acabei por ficar sozinho em casa, alterei a disposição para um jovem que começava a trabalhar.” A sala era metade sala e metade quarto. A sala ficou só sala e João ocupou o quarto onde antes dormia a irmã. O T1 deixou de ter aquele ar de vida de estudante e ficou ao seu gosto. “Adoro viver sozinho, não tenho problema absolutamente nenhum. Adoro porque tenho sempre a possibilidade de estar com alguém, de fazer um jantar para um ou para dez amigos, e a liberdade de estar sozinho.” Como ter o melhor de dois mundos.

Isabel Pinto, contabilista, 52 anos, mora sozinha desde 2016, há quase seis anos também, depois de um casamento, um relacionamento, duas separações. Nunca foi opção voltar para casa dos pais e nunca houve pressão para que isso acontecesse. Aprendeu a viver sozinha e está bem, contente e satisfeita. “Com o passar dos anos, habituamo-nos a ter as nossas rotinas, os nossos hábitos”, refere. A sua balança pende mais para o lado das vantagens do que das desvantagens. Sempre apreciou o seu cantinho e cada vez mais valoriza o seu tempo, o seu espaço. “Não tenho horas para fazer nada, para fazer uma refeição, para me deitar. Faço o que me apetece, quando me apetece.”

Luís Afonso, engenheiro, já passou dos 30, mora sozinho há quase oito anos, estudou no Porto e no Porto ficou. Sempre quis morar numa grande cidade e viver sozinho foi uma inevitabilidade que está a correr bem. “Tenho o meu sossego, o meu espaço, a minha privacidade, a minha desorganização, as minhas regras.” É assim que enumera as vantagens da sua condição. Poder lidar com a sua desarrumação sem chatices, não ter de seguir as regras dos outros. Até poderia optar por dividir casa, mas não, não quer. “É impensável chegar a casa e não ter o meu sossego, gosto efetivamente do meu sossego.” “Sozinho estou bem, mal-acompanhado não consigo, não dá, é insuportável”, admite.

Há viver sozinho por opção e viver sozinho por razões circunstanciais. Para Nuno Mendes Duarte, psicólogo clínico e psicoterapeuta, é importante fazer essa distinção. “Por uma inevitabilidade, entenda-se que poderemos estar a falar de pessoas que, pela sua forma de se relacionarem com os outros, nunca conseguiram uma ligação de qualidade e duradoura, talvez por não se sentirem compreendidos ou porque têm dificuldades em estabelecer uma conexão genuína com os outros”, comenta.

Vidas de solidão são vidas de sofrimento, mas não é disso que se trata. “Na solidão, existe uma sensação de isolamento e falta, enquanto estar sozinho por opção conduz a uma sensação de autoaceitação em que não se precisa mais dos outros para satisfazer as suas necessidades.” Viver sozinho não significa solidão.

Equilíbrio, organização mental, autossuficiência

Isabel Pinto é uma mulher prática, pragmática, bem-disposta, de bem com a vida, que não complica o que não tem de ser complexo, que vive o dia a dia, que não exclui possibilidades e oportunidades. Viver sozinha nunca foi um bicho de sete cabeças. “Vivo sozinha e não me sinto só”, garante. “Tenho um equilíbrio na minha vida, as coisas de que preciso. Tenho o meu emprego, que me preenche e me dá estabilidade financeira, e tenho um lado social ativo. Tenho família e vou lá casa quase todos os dias, almoçamos ao fim de semana. Tenho muitos amigos, gosto de sair, de conviver, de beber um copo, dançar. Gosto de tudo isso, como gosto de estar em casa sozinha a usufruir do meu espaço e do meu lar.” Solidão, isolamento, tristeza, não fazem parte do seu discurso. Tem uma gata, desde miúda que tem gatos, que é uma companhia, é certo, mas sempre viveu com esses animais.

É possível viver sozinho e ser feliz. Claramente, realça Catarina Mexia, psicóloga clínica, terapeuta familiar e de casal. Por vezes, até é uma oportunidade de viver sonhos adiados, aprender a conhecer os seus próprios ritmos, conhecer mais amigos, diversificar interesses. “A escolha consciente da vivência a sós pressupõe uma organização mental de autossuficiência e convívio social que enriquece e preenche a vida dessas pessoas, permitindo-lhes usufruir do espaço e tempo a sós com a liberdade desejada.”

A experiência de solidão é diferente da experiência de estar sozinho. João Urbano não é pessoa de se isolar, afasta a palavra solidão da conversa, gosta de sair, de estar com os amigos, de conviver. “Não gosto de ficar em casa, mas, ao final do dia, gosto de ter o meu espaço quando volto a casa.” Já explicou aos pais, e várias vezes, que ficar o fim de semana no Porto, numa casa sozinho, não é aborrecido. “Para mim, não é uma tortura, também é bom.” Durante o confinamento, não arrancou cabelos, recuperou o hábito de ler, de ver séries na televisão, fez várias videochamadas com os amigos. “Não posso dizer que entrei em desespero”, conta.

João Urbano não é pessoa de se isolar. Gosta de sair, de estar com os amigos, de conviver: “Não gosto de ficar em casa, mas, ao final do dia, gosto de ter o meu espaço”
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

Viver sozinho e estar sozinho estão longe de ser a mesma coisa. No entanto, são realidades confundidas com alguma regularidade. Catarina Mexia fala de evidências científicas. “As pesquisas mostram que é a qualidade e não a quantidade de interações sociais que melhor predizem a solidão. O que importa não é se vivemos sozinhos, mas se nos sentimos sós.” Não há nada mais solitário do que estar com a pessoa errada é uma frase que escuta com frequência nas suas consultas. Nuno Mendes Duarte destaca, a propósito, esse paradoxo: quem vive uma relação pode sentir solidão se a partilha com o companheiro for de fraca qualidade. “E quando, por alguma razão, se separam acabam por se sentirem menos sós porque estão mais ligados a outros recursos e menos ressentidos com a falta de disponibilidade que sentiam por parte dos anteriores companheiros.”

Luís Afonso tem uma agenda profissional ocupada, sai cedo de casa, trânsito até à empresa, acaba o trabalho por volta das seis da tarde, e tem duas opções. Fazer-se à estrada, normalmente entupida, habitualmente uma hora de caminho até casa, ou ir ao ginásio praticar desporto e cuidar de si. O trânsito, entretanto, alivia, chega a casa por volta das 21.30 horas. Tomar banho, cozinhar, relaxar, dormir. Ao fim de semana, se não vai visitar a família, passa mais tempo em casa, veste calções e calça sapatilhas e vai correr, fazer uma caminhada. Habituou-se a estar sozinho e, para já, não tenciona mudar de planos. Nuno Mendes Duarte assinala outros pontos dessa condição. “Viver sozinho oferece a oportunidade de aprofundar, com maior liberdade, os interesses pessoais, sem interrupções ou solicitações que poderiam impedir o usufruto de hobbies ou atividades.”

O preconceito, dias bons, dias maus

Seja como for, em qualquer uma das situações, por opção ou por inevitabilidade, há desafios diários quando se vive sozinho. Evitar o isolamento, ter estímulos sociais constantes, manter o bem-estar psicológico, não ceder às manhas da tristeza e da solidão. Catarina Mexia acrescenta as questões financeiras, bem como a manutenção de uma rotina e de hábitos sociais privados. “Não vale comer piza ao pequeno-almoço por sistema, ou não tomar banho regularmente, só porque não há ninguém a reclamar.”

As vantagens estão estudadas. “Estas pessoas têm tendência a desenvolver e manter mais amizades, expressar maior satisfação e realização pessoal, maior envolvimento comunitário, maior capacidade de organização pessoal”, adianta a terapeuta de casal. Pode até ser uma oportunidade de crescimento, realização e descoberta pessoal, seja qual for a idade. Por outro lado, Nuno Mendes Duarte sublinha que “são as relações de qualidade que mantemos ao longo da vida que poderão assegurar uma boa parte da nossa felicidade.” Viver sozinho exige, lembra, desenvolver mecanismos que aumentem a confiança. “As pessoas que vivem sozinhas descrevem como libertadora a experiência de gerirem as suas prioridades e o seu tempo, sem serem criticadas e com maior privacidade e espaço pessoal.”

Há dias bons e dias maus, como em qualquer vida só ou acompanhada. E há ainda algum preconceito à volta deste modo de viver, apesar de o Mundo pular e avançar. As mulheres estão mais independentes, os homens mais capazes da gestão da vida caseira. “Muitas vezes, as pessoas que vivem sozinhas são definidas pela negativa – não constituem família ou não estão casadas. Como se só existisse uma dimensão da vida a ser considerada. Quando há outras dimensões da vida que pode ser socialmente ativa, profissionalmente ocupada, preenchida com hobbies e interesses abrangentes”, observa Nuno Mendes Duarte.

Catarina Mexia acredita que os tempos são outros, a sociedade mudou, há dedos que já não se apontam. “Hoje em dia, há uma nova geração de mulheres que não procura uma relação para tapar um buraco ou preencher um vazio. Procuram relações que as satisfaçam plenamente”. Ainda assim, há preconceito e lidar com isso não é fácil. “Desvalorizá-lo é a melhor solução”, aconselha.

A sociedade está em constante evolução. Mudam-se conceitos, alteram-se formas de estar na vida, há cada vez mais gente a viver sem mais alguém debaixo do mesmo teto. “Na realidade, as mudanças da sociedade foram facilitando o crescimento do número de pessoas que escolhem viver sozinhas. Mudanças no estatuto e independência das mulheres, o aumento das cidades, o desenvolvimento da tecnologia das comunicações e o aumento da esperança média de vida, são algumas das condições que facilitaram a existência da escolha em viver sozinho.” E quando é uma opção é uma opção.