Valter Hugo Mãe

Dia de namorar


Rubrica "Cidadania Impura", por Valter Hugo Mãe.

É dia de namorar a sorte de existirmos uns com os outros. É dia de namorar pela gratidão de quanto nos permite sobreviver, persistir, ter esperança, esperar, amar, vir a amar ou ter amado.

Estamos impedidos de muitos amores mas espero que todos tenhamos ao menos o caminho seguro de um grande afecto. Durante tempos de pandemia somos convidados ao exercício avaro dos carinhos mas havia de existir um gabinete governamental para obviar à segurança sanitária do amor principal. No fim de todas as contas, o que valemos é o que sabemos amar e ninguém vale se não justificado por amar, vir a amar ou ter amado. Toda a cidadania haveria de ser um propósito último para o encontro de alguém.

Hoje é o dia de São Namorados, como se diz por ternura. É-nos pedida contenção nos gestos, o que torna fundamental a exuberância das intenções. Quero dizer, o namoro é a etiqueta mais atenta para a conquista do amor. Com o namoro nos coreografamos para a sedução da pessoa desejada, e todos os movimentos pretendem o encanto e o cuidado. Como se nos apresentássemos a alguma garantia de bem-estar mútuo. Tudo como promessa de amar. Namoramos como promessa de amar.

O importante de todos os dias, diria de todas as intenções, é que estejamos genuinamente focados na oportunidade de sermos fundamentais para alguém e de termos alguém como fundamental nas nossas vidas. Por isso, não sou de meias medidas com estas coisas. Gosto de declarar e garantir. Nunca deixarei de manifestar a importância das pessoas para mim, quero que saibam sempre o quanto lhes agradeço a presença, a paciência, a construção, a educação da minha alma.

Ao menos hoje, nem que escudados pelo pretexto de São Valentim, seria uma vingança rotunda contra a pandemia que nos declarássemos todos a todos quantos queremos. Por qualquer tipo de amor, se não pode haver gesto, porque estamos limitados nos toques, façamos do dia de hoje a celebração da universalidade do afecto e gulodemo-nos com glorificarmos os pais, os filhos, os amigos, os vizinhos que nos recebem o correio quando estamos fora, os lojistas que nos guardam o último exemplar do “Jornal de Notícias”, os profissionais de saúde que nos andam a salvar, lenta ou urgentemente. É dia de namorar a sorte de existirmos uns com os outros. É dia de namorar pela gratidão de quanto nos permite sobreviver, persistir, ter esperança, esperar, amar, vir a amar ou ter amado.

Vou passar o dia a ouvir o Philippe Jaroussky a cantar “À Chloris”, do Reynaldo Hahn, porque me traz a impressão de uma alegria já muito madura, calma, que sabe o deleite sem mais angústia de se declarar o amor por alguém. Por te amar, não creio que nem os reis sintam felicidade como a minha. Eis o segredo para o melhor dos impérios.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)