Valter Hugo Mãe

Aqui os amigos


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Por anos, vir a Coura era rever as personagens do clube. Cidadãos tácitos dessa cidade onde o município seria presidido por Nick Cave.

A primeira sinfonia de Brahms, a minha favorita, dirigida por Toscanini, o bruto, é meu modo de estardalhar. A abertura, com suas investidas mais violentas, a maravilha das percussões, e o melancólico das quebras, parece-me pura perturbação, proibição da normalidade. Eu anseio pela normalidade mas combato-a constantemente porque caminhar para ela deve ser adiado, relutante, um exercício de sensatez que se deseja apenas aos que se consumam ou adoecem. Estou sempre com a música demasiado alta quando conduzo. Não conduzo, vou no meio da multidão, ergo a orquestra como se gigante, alguém gigante que possa caber uma orquestra na palma da mão. E imagino o Toscanini na sua fúria temível a obrigar todos os intérpretes ao rigor de Brahms, o génio cheio de dúvidas. Tão perfeitos para se juntarem, tão díspares em seus espíritos.

Desço de auscultadores ao recinto do Festival de Música de Paredes de Coura, onde guardo a grata memória de haver visto os Sonic Youth, os Bauhaus ou os Mão Morta. Foi sempre meu sonho que a organização tivesse coragem para agendar uma orquestra para fazerem uma sinfonia inteira, um grandiosa sinfonia que se levantasse de entre o arvoredo a pleno pulmão. Não entendo que alergia terão as cervejeiras à música erudita e por que razão não haveriam os mais jovens de espantar ao menos com a oitava de Mahler, nem que apenas com os andamentos finais, nem que apenas com o último de todos, na progressão incrível das vozes.

Sento-me na ladeira da tenda vip. Lembro como ali estava com o Alexandre e com a Carla, o ar de punks sem consumo, a refilar contra o preço dos cachorros-quentes e à espera que passassem as bandas mais telefónicas para chegarem as do rock a ferrar. Éramos irritadíssimos com a burguesia, coisa que tolerávamos apenas à família por muito amor. Precisávamos de rebeldia porque tudo nos disciplinava. O decoro ainda antigo e a pobreza pretendiam de nós uma quietude abnegada. Mas não podíamos ficar quietos, ao menos não por dentro, onde havia sobretudo sonho por conquistar, tanta hipótese de errar em tudo, tanta hipótese de nada conquistar.

Vir a Coura para o festival era o culto da libertação. Não servia para sermos imediatamente melhores, servia para chegarmos mais perto da nossa própria natureza, descomplexados, apaziguados com sermos feios, falhos, estarmos deixados para o fim, estreitos nas oportunidades, de esperança fixa apenas na música e em como ela nos mapeava cúmplices semelhantes. Por anos, vir a Coura era rever as personagens do clube. Cidadãos tácitos dessa cidade onde o município seria presidido por Nick Cave.

Estamos, agora, burgueses, mesmo que nos tenhamos um amor difícil, muito crítico. Passamos a entender a beleza dos pífaros e dos fagotes, passamos a tolerar até as harpas e seus timbres soporíferos. No recinto quase sagrado do festival de Coura, onde minha juventude maturou algumas de suas maiores felicidades, ouço Brahms e as abelhas levam o açúcar que há no pólen dos meus ouvidos. Faltam-me aqui os amigos. No recinto do festival, como na campa do meu pai, a ausência é quase insuportável.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)