Valter Hugo Mãe

Agosto de todas as coisas


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Há uma sorte em ser de aqui e estar aqui, poder ficar entre as paisagens protegidas a ver como ainda há espiritualidade em não tocar em nada e voarem pássaros.

Chegaram os emigrantes e encheram a vila, encheram as procissões a Tui, as gasolineiras, a praia fluvial, a esplanada. Falam francês à pressa, tão em outro ritmo, como se tivessem de comer em menos tempo do que nós, como se tivessem de viver o dobro do que vivemos nós. Agosto é esse mês excêntrico em que os portugueses também são estrangeiros. Uns estrangeiros ávidos, definidos pelas saudades e um certo paternalismo por quem ficou a habitar os lugares de origem, vilas e aldeias calmas onde o Mundo parece ser deixado no exterior.

Não se fala de outra coisa senão da demência talibã, o poder tomado no Afeganistão e a passividade que demora em Moçambique. Quem ficou a habitar estes lugares calmos não está fora do Mundo mas a expressão mais permanente é a da graça por vivermos num canto de paraíso. Há uma sorte em ser de aqui e estar aqui, poder ficar entre as paisagens protegidas a ver como ainda há espiritualidade em não tocar em nada e voarem pássaros.

Fizemos o estradão para ver a peça de Dalila Gonçalves ao pé do penedo da Serra da Labruja, onde fica a casa do guarda-florestal. Os que caminham para Santiago passam ali e conquistam aquela vista limpa, bem como se deparam com as árvores que abrem em fole, como um caderno japonês que a artista levantou no entroncamento. São uma certa transparência das árvores, modo de ver através, entre, por dentro. Fazem a sombra perfeita na terra batida. Adiante, e um pouco em todo o redor, sangram as resinas e os troncos encarnam como se fossem animais. Que aflição retumbante que as árvores mostrem suas feridas vermelhas sob os cascos, iguais a serem mesmo de carne, a serem bichos verticalíssimos, quietos. Julgamos que as árvores sofrem.

Para outros lados de Coura noto um imenso porco de cimento na varanda de uma casa. Pela estrada se avista como fica gordo ocupando o espaço quase todo, e como engradaram a varanda talvez para que não fuja ou seja roubado. Em Giesteira, há dois cães ao portão pintados no laranja mais alegre do mundo. Antes um pouco, alguém enfiou um manequim no rachado de uma árvore velha. Uma mulher que resulta num susto tremendo a sair de dentro da árvore como as bruxas dos piores pesadelos de criança.

Ando a dizer que Paredes de Coura é a Twin Peaks de Portugal porque aqui pressinto o improvável e gosto muito que seja assim. Sem a tirania do bom gosto mas, afinal, com bom gosto a sobrar por toda a parte. Quero dizer, há algo de profundamente genuíno e livre, até de indisciplinado, que leva às expressões espontâneas sem demasiado filtro ou peneiras, e isso deita uma originalidade maravilhosa sobre os costumes, o que me parece libertador, celebrante, inteligente.

Discute-se como poderemos agora ajudar as pessoas do Afeganistão. À revelia do entorpecimento do Verão, dizia uma moça, é urgente ver o sofrimento e a matança para lá da beleza de Coura. A beleza não pode ser opacidade. Tem de exigir ainda. Estamos entre palavras portuguesas e francesas e, diante das garrafas e dos copos, queremos salvar o Mundo. Em todas os diálogos é urgente dizer Afeganistão e é urgente dizer o asco a todos os fundamentalismos religiosos.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)