Rui Cardoso Martins

A Mensageira e a Perita

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Que belo combate de olhos. Duelo de movimentos, torneio das artes do furto. Hoje, no entanto, nada disso: a Mensageira não compareceu à chamada e o julgamento fez-se sem ela, só pudemos ouvir a Perita. Isto foi a 13 de Outubro de 2020, nas Amoreiras, em Lisboa.

– Eu estava a atender clientes e o meu colega estava a fazer armazém, estávamos os dois sozinhos e eu a atender a caixa e dei conta que estava a ser vigiada pela arguida.

– Vigiada, como?, perguntou a procuradora.

– Senti-me observada. E vi mais duas pessoas que estavam a acompanhar a arguida. Foi então que eu percebi que estávamos a ser roubados.

– Como é que se apercebeu disso?

– Pelos gestos. Elas estavam a comunicar entre si e estavam com várias peças na mão e… sentiram-se confrontadas, ficaram sem jeito quando as confrontei.

– Portanto, a arguida tinha peças na mão e…

– A arguida não tinha peças, a arguida era a Mensageira!

A palavra caiu no tribunal como uma chave secreta. Agora íamos todos – juíza, procuradora, advogadas, escrivão e eu que também escrevia – saber que coisa no Mundo é uma Mensageira:

– Estava a observar-me para que elas pudessem fazer o furto.

Mensageira: a que vigia a própria vigilante. Duas mulheres fugiram com as malas cheias de roupa, ela ficou para trás.

– E não conseguiu fugir porquê?

– Não sei, ficou mais para trás… as outras já estavam dentro da loja mas mais perto da saída. E quando se aperceberam que eu me estava a chegar a elas, fugiram. E ela ficou para trás porque eu confrontei-a e apareceu o segurança e o polícia.

O tribunal admirado com a exactidão da queixa.

– São 206,90€. Seis pares de calças, três camisolas, uma saia.

– Confirma que foram esses os artigos?

– Exacto. Mas, além dos artigos roubados que não foram encontrados, encontrámos peças que foram deixadas para trás por não terem conseguido levar. Muitas tinham alarme, muitas já não tinham alarme ou estava danificado.

– Mas aí… mas isto está muito bem! A senhora é uma perita em furtos, não é?, exclamou a procuradora.

– Eu trabalho nessa loja, respondeu a Perita, lapidar, abanando a juba espessa.

Primeiros risos no tribunal. E os alarmes, como os tiram as ladras?

– Já encontrámos ganchos, mas não de cabelo, são ganchos específicos para… há várias coisas… há um alicate mesmo para… Neste caso deve ter sido o gancho, porque o alarme… só a parte em que entra o alfinete é que estava danificada.

– Foi a primeira vez que viu esta senhora?

– Não, já as conhecia por irem lá à loja, sim. E ficámos de olho. Os seguranças e os polícias do centro também.

Na advogada de acusação, ainda uma dúvida sobre tais certezas:

– Eu só queria que me esclarecesse uma coisa: como é que conseguiu apurar quais eram as peças que foram levadas?

– Vou-lhe explicar. Na nossa empresa nós temos um programa. Antigamente nas lojas, tínhamos a etiqueta, não é?, e passávamos o código de barras para dar o valor da peça. E depois é que se retirava o alarme. Hoje em dia já está tudo no alarme. Nós temos uma máquina que nos dá a informação do que é, o alarme já diz o que é a peça.

A juíza abriu os braços em largo leque. Agora havia verdadeira alegria no trabalho.

– Terminou o seu depoimento. Bom resto de dia. E continue assim, toda despachada. Uma grande especialista em furtos, hã!? É assim mesmo. Olhe, a gente vai dizer bem de si à administração da sua empresa!

– Adeus, muito obrigada!, arrulhou a Perita, e saiu esticando o rasto de elogios trocados atrás dela.

“Que senhora tão despachada, é segurança, é vendedora!, é tudo!, é tudo! ela até pode dar formação às colegas, chega lá, sozinha na loja!, até podia fechar os olhos! mas não, e ali nas Amoreiras é para ganhar boa experiência, ninguém diria!”

Quanto à Mensageira, a ausente, era outra a mensagem: pela participação em furto consumado, por ser useira de burlas informáticas e licenciada em cheques carecas, a procuradora pediu pena de prisão efectiva, isto é, sentença a sério, com os olhos e as mãos numa cela, atrás das grades.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)