Planos no fim da vida

Os honorários marcam a diferença entre uma doula de fim de vida e um voluntário. (Foto: Gonçalo Villaverde/Global Imagens)

A morte anunciada pode suscitar a vontade de resolver assuntos há muito pendentes e as doulas de fim de vida facilitam a tranquilidade nesse momento. Ana Infante é, por enquanto, a única em Portugal formada na matéria.

O percurso de Fátima Ribeiro até “aprender a lidar com o luto do corpo” com um sorriso não foi fácil. Não é de resignação, esse sorriso. É genuíno e espelha a atitude positiva. Consciente das suas limitações, Fátima prefere ver “o copo meio cheio”. “A realidade não é boa, mas ainda posso ver coisas bonitas”, afirma esta mulher de 30 anos, de Loures. Mostra, com orgulho, diversas fotografias antes da distrofia muscular recessiva se manifestar. Momentos em família e muitos com o seu irmão, Rúben, três anos mais velho. Numa, em que está na praia, chama a atenção para as pernas. “Estava sempre a cair. A mãe pensava que tropeçava. As quedas eram cada vez mais frequentes e na escola notaram que tinha dificuldade em levantar-me do chão.” Consultou um ortopedista, usou botas ortopédicas, colocaram como hipótese a falta de cálcio. Entretanto, perdia força muscular e as quedas intensificaram-se ao ponto de ter regularmente o queixo negro. Com oito anos, fez uma biópsia e soube da doença que a acompanharia para a vida. Dois anos mais tarde, caiu e deslocou o osso da bacia. Nesta altura, Filomena começou a introduzir a cadeira, em especial quando percebia que a filha estava cansada. Aos 13, deixou de andar. O pai faleceu há 20 anos, não assistiu à evolução da doença de Fátima, também chamada carinhosamente Rodinhas, Fátinha ou Isa, de Isabel, o segundo nome. Acompanham-na a mãe e o irmão. Os seus cuidadores.

O quadro clínico piorou em 2017. “Apareceu a disfagia, o estado dos pulmões agravou-se e sou ventilada durante a noite”, relata. O risco de sofrer um engasgamento fatal é iminente. “A comida não vai para baixo. Tenho de beber água com espessante, porque no estado normal engulo muito rapidamente e posso engasgar-me ou ter uma pneumonia”, exemplifica. “As limitações aumentam de dia para dia”, desabafa, muito consciente que lhe podem causar a morte.

Fátima Ribeiro, 30 anos. Foi-lhe diagnosticada distrofia muscular recessiva aos oito anos. Não exclui a possibilidade de recorrer às doulas de fim de vida
(Foto: Gonçalo Villaverde/Global Imagens)

A ansiedade e a angústia abrandaram há três anos quando Fátima descobriu a Amara – Associação pela Dignidade na Vida e na Morte. Miguel Borges é o presidente desta organização e compara o trabalho dos voluntários, que ele também faz, a uma peça muito pequena de um relógio: “Se for eliminada, o mecanismo continua a dar as horas, contudo perde a precisão”. Desde a fundação, em 2003, já foram acompanhadas 120 pessoas e respetivos familiares. Atualmente recebem apoio 30, por parte de 14 voluntários. Este “acompanhamento existencial de escuta ativa e presença plena” é gratuito, indica Miguel Borges, que evidencia a importância das ações formativas para a sustentabilidade da associação.

O curso doula de fim de vida é a última oferta formativa e surgiu por iniciativa de Ana Infante. “Escolhi sete formadoras para abordarem temas das suas valências. Também tenho convidados: um médico, por exemplo, fala do testamento vital.” Houve, contudo, um caminho percorrido antes de arrancar a primeira edição, que termina a 15 de março, com 14 participantes. A formação, certificada pela Amara, tem 144 horas presenciais e 70 individuais (trabalho em casa).

Ana Infante, a única doula da morte

Natural de Alcains, Castelo Branco, Ana Infante tem 39 anos e é enfermeira no Serviço de Obstetrícia do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. É a área em que escolheu trabalhar, mas foi em Oncologia que começou a exercer enfermagem, concretamente em cancro da cabeça e pescoço. Aqui viu “o que não é suposto acontecer”. Aprofundou conhecimentos na pós-graduação em Cuidados Paliativos (CP) e no mestrado em Dor na Universidade de Medicina de Lisboa, e prosseguiu a carreira em CP. Em 2015 fez o curso de Doula do Nascimento pela Rede Portuguesa de Doulas e pensou que faria todo o sentido ser aplicado também ao fim de vida. “Pesquisei e encontrei muita informação. Em Portugal, estamos mais de 20 anos atrasados.” Os primeiros movimentos de doulas da morte têm origem em Nova Iorque, em 2000. Atuam na Austrália, Brasil, Canadá, Espanha, Reino Unido e, por cá, Ana Infante é por enquanto a única. “Estou a fazer um curso online da Soul Midwives, do Reino Unido. Foi aquele com que me identifiquei. Também optei pela abordagem que mais facilmente seria aplicada à realidade portuguesa.”

Anne de Albuquerque Taylor, 58 anos, frequenta esta formação e, tal como os outros formandos, estará sujeita a uma avaliação individual. Se estiver apta para trabalhar, fará parte de uma rede e terá supervisão. Anne é americana, chegou a Portugal em 1988, vive em Santarém e decidiu mudar de rumo após a morte do seu pai em 2014. Abraçou o voluntariado em lares de terceira idade em Santarém e no Alentejo, depois de uma carreira em relações públicas. O primeiro contacto de Anne com uma doula de fim de vida aconteceu há dez anos. “Foi contratada por um familiar e observar o seu desempenho foi uma experiência extraordinária. Quando o meu pai estava a morrer, sugeri à minha mãe esse acompanhamento. A questão financeira foi um dos motivos pela qual não se concretizou”, revela.

Os honorários marcam a diferença entre uma doula e um voluntário. “O serviço deverá ser pago”, assinala Ana Infante. Não avança valores e diz que está a criar uma tabela “para orientação das futuras doulas”. “Não alimentamos, não fazemos higiene, não mobilizamos a pessoa, não efetuamos compras e não prestamos cuidados de saúde mesmo que sejamos médicos”, enumera Miguel Borges sobre o trabalho de voluntariado da Amara. “Temos uma presença semanal de cerca de uma hora. Vamos ao domicílio, aos lares e aos hospitais, regra geral, referenciados por médicos, assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros ou familiares.”

Ana Infante é enfermeira, doula do nascimento e doula de fim de vida
(Foto: Gonçalo Villaverde/Global Imagens)

Ana Infante preparou um código de conduta, em que é referido que as doulas de fim de vida devem facilitar dados baseados em evidência científica para promover a escolha informada e consciente, sem “orientar” ou “convencer”. Entre outras cláusulas, é também mencionado que deverão ter noções claras da fisiologia do fim de vida, saber reconhecer situações de desconforto e sofrimento físico, emocional e existencial. “A doula não presta cuidados paliativos, mas pode trabalhar com uma equipa desta área”, salienta.

Nesta área da medicina, Portugal “está muito longe das metas desejáveis e desejadas”, lamenta Duarte Soares, presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos (APCP) e assistente hospitalar em Medicina Interna, a trabalhar exclusivamente em CP. “A acessibilidade permanece abaixo de 30% das cerca de 80 mil pessoas que anualmente necessitam de nós. Significa que 50 mil portugueses não recebem os cuidados que lhes são legítimos”, aponta o médico, mencionando a sobreutilização de serviços clínicos não vocacionados para doentes com necessidades tão abrangentes, como o serviço de urgência.

Fátima Ribeiro, que é observada por médicos de diferentes especialidades, já recorreu a uma empresa privada de cuidados paliativos. “Pagávamos cerca de 300 euros mensais. Não conseguíamos comportar essa despesa.” Há três meses que tem apoio de cuidados continuados através do centro de saúde, duas vezes por semana.

Duarte Soares concebe o doente para lá da doença, nas vertentes biológica, psicológica, social e espiritual. “Existem cada vez mais ferramentas disponíveis para ajudar quem sofre e quem cuida. É uma área de forte investimento internacional, tanto na investigação como na clínica.” Sobre as doulas de fim de vida, o presidente da APCP afirma que o acompanhamento no processo de morte é um dever de todos e não uma tarefa exclusiva dos profissionais de saúde. “Temos que nos reeducar a cuidar dos nossos. Da música ao teatro, do cinema às terapias complementares, dos momentos de reflexão ao relaxamento. Por que não deve a medicina abrir-se a mais conhecimento?”.

“Vamos todos morrer. Só não sabemos quando, onde e como”

“As doulas do final da vida não são profissionais de saúde, nem os substituem”, sublinha Ana Infante. Na prática, podem facilitar os planos traçados para o final da vida, colaborar na realização do testamento vital, dar suporte emocional, ajudar na concretização de sonhos, na mediação de conflitos pessoais e familiares, fazer a ponte com médicos, auxiliar na realização do funeral ou estar presente nos últimos dias e horas de vida de uma pessoa. “Assistem as pessoas na morte, o que não tem nada a ver com eutanásia”, clarifica. “Todos nós deveríamos ser assistidos na nossa morte.”

A ansiedade e a angústia abrandaram há três anos quando Fátima descobriu a Amara – Associação pela Dignidade na Vida e na Morte
(Foto: Gonçalo Villaverde/Global Imagens)

Podem, ainda, ajudar no apoio logístico e domiciliário após o falecimento. Em relação ao luto, há implicações se a morte foi anunciada. Enquanto um episódio súbito “obriga ao confronto com a realidade de forma muito rápida, no caso de uma doença crónica e evolutiva, o tempo de cuidar, preparar o doente e família para o momento da morte permite desenvolver diálogos fundamentais para resolver assuntos pendentes”, explica Lídia Henriques Rego, especialista em psicologia clínica e da saúde, mestre em CP e formação pós-graduada em Bioética e em Luto. Exerce na LInQUE, uma cooperativa de CP no domicílio que também tem um grupo de apoio ao luto (GRAALL), e comenta que “o fim de vida é uma condição inerente a sermos humanos e, como tal, deveria ser integrada como algo natural, como é o nascimento”. Miguel Borges lembra que “vamos todos morrer. Só não sabemos quando, nem onde, nem como”.

Ana Infante ressalva que o apoio das doulas não se destina unicamente a pessoas em fim de vida. Refere como exemplo um profissional da saúde que a contactou por ter dificuldades em lidar com questões relacionadas com a morte a nível pessoal. “É trazer a morte para a vida.” E, apesar de ainda não existir enquadramento legal para a atividade, está confiante com a realização do curso. “É um passo. O caminho faz-se devagar.”

Anne Taylor começou a “treinar a morte” da mãe, de 80 anos. “Tenho aproveitado a matéria do curso.” O estado de Fátima Ribeiro vai continuar a agravar-se e, para realizar algumas tarefas, adapta o que é possível adaptar. “Descobri uma técnica para falar com a mãe e o mano através do computador quando estou ventilada, que vai ser útil quando a voz falhar”, comenta a jovem que encontra na pintura uma “forma de relaxar”.