Teletrabalho a quanto obrigas

O teletrabalho tornou-se uma imposição, por razões de saúde pública

É um novo contexto feito de desafios, exigências, adaptações. Ninguém escapa: chefes, trabalhadores, famílias. Há que estabelecer fronteiras, eliminar barreiras. E confiar.

É a primeira vez que Isabel Pinto, contabilista há mais de 25 anos, está em teletrabalho. Em março, a empresa que presta serviços de contabilidade reorganizou o seu modo de funcionamento. Isabel está ligada ao computador que tem no escritório e um dia por semana, de forma combinada com os colegas para não haver cruzamentos, vai à empresa buscar documentos, imprimir o que é necessário, arquivar correspondência. Os contactos com os clientes são feitos sobretudo por email, por vezes pelo telemóvel. Tem autonomia, prazos a cumprir, adaptou-se bem.

São nove meses de teletrabalho, faltam-lhe rotinas. Sair de casa, estar com colegas e amigos, andar pelas ruas perto do trabalho no centro do Porto. “Vivo sozinha e, por isso, ao fim de alguns dias, sinto-me um pouco isolada. O dia torna-se um bocado mais aborrecido.” No futuro, Isabel vê com bons olhos um regime misto, uns dias em casa, outros na empresa.

Patrício Macedo é designer e diretor criativo da Viarco, fábrica de lápis, em São João da Madeira, e não quer voltar ao teletrabalho. Esses dias e meses foram divididos pelo apoio escolar às filhas de 16 e 11 anos, sobretudo à mais nova, pelo suporte aos avós da mulher, e pelo seu trabalho criativo. “No teletrabalho há mais facilidade de trabalhar fora de horas e um bocadito mais.” Estipulou um horário das 17 às 20 horas e das 21 às duas da manhã, mais coisa menos coisa. “Era possível porque não dependia de outros, nem ninguém dependia de mim.”

A família adaptou a logística, primeiro em casa dos avós, depois na própria casa. Patrício tem todos os recursos para trabalhar à distância e um disco externo que anda sempre consigo. Mas a experiência de teletrabalho com a escola das filhas em casa confirmou o que suspeitava. “É muito cansativo, não dá para fazer tudo ao mesmo tempo.” O balanço, porém, não é negativo. “Fizemos produtos, embalagens, coisas novas a partir de casa.” Seja como for, prefere o seu espaço na Viarco, o horário de trabalho, as rotinas a que se habituou.

O teletrabalho tornou-se uma imposição, por razões de saúde pública, e é, para a maioria, uma estreia. O facto de não ser uma escolha tem consequências. Questiona-se a autonomia, a disciplina, os recursos, a reorganização pessoal e profissional. “Estas dificuldades são geradoras de stresse que tem impacto físico e psicológico. Maior dificuldade em dormir, em ter um sono de qualidade, ansiedade durante o dia, cefaleias, sistema imunitário fragilizado, consumos problemáticos, automedicação, o jogo”, enumera a psicóloga Teresa Espassandim, da direção da Ordem dos Psicólogos.

“Estamos debaixo de uma autovigilância permanente e elevada”, explica a psicóloga Teresa Espassandim
(Foto: DR)

Maior conflitualidade e menor tolerância são efeitos secundários do contexto de teletrabalho. Com lideranças centradas no controlo, ainda pior. Câmaras ligadas, tempo contado em frente ao computador, tecno stresse porque tudo acontece frente a um ecrã. A equação não é difícil de fazer. “Menos escolhas, menos liberdade, menos envolvimento nestes processos.”

Há dificuldades. Produtividade condicionada pelos recursos disponíveis. A espontaneidade frente a um ecrã fica comprometida, menos possibilidades de encontrar soluções criativas, chefias pouco flexíveis. No limite, cansaço extremo. “Estamos debaixo de uma autovigilância permanente e elevada, usar máscara, desinfetar as mãos, cumprir o distanciamento social. Tudo isso implica sacrifícios para manter comportamentos para a segurança física.” E quando a energia emocional se esgota, a exaustão bate à porta.

A resistência das chefias

Maria José Chambel, doutorada em Psicologia, professora da área de Psicologia dos Recursos Humanos, do Trabalho e das Organizações na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, tem analisado o teletrabalho em tempos de confinamento. “Temos uma perceção de como as pessoas estão a viver este período.” São resultados de estudos feitos numa amostra de 70% dos trabalhadores de quatro empresas da área de serviços que têm, no total, cerca de 500 funcionários.

O teletrabalho é uma modalidade que já existia, mas pouco utilizada no nosso país. “A maioria usava pouquíssimo, não era usada por mais de 15% dos trabalhadores. Havia uma certa resistência das chefias diretas”, adianta. Com o confinamento, de um momento para o outro, quase todos foram para casa. Uma imposição que afetou o tecido laboral de alto a baixo e 80% dos trabalhadores nunca tinham trabalhado a partir de casa. “Era uma situação totalmente nova que causou bastantes incertezas e inseguranças para as organizações e para as pessoas, algo novo que foi implementado num contexto de pandemia.”

Nada seria como dantes, várias adaptações, outras dinâmicas. Quem tem filhos até aos 12 anos encontrou mais dificuldade. “Os pais tiveram de se dividir entre o próprio trabalho e as tarefas escolares, foi um desafio imenso.” De qualquer forma, mais de 90% dos inquiridos adaptaram-se à nova situação.

O que favoreceu esta adaptação? Vários fatores que envolvem características do indivíduo e da organização. Estabelecer um horário para trabalhar, ter um local específico para o fazer, arranjar momentos de isolamento. “Todas as pessoas que conseguem ter momentos para desligar do trabalho, momentos de tempos livres com atividades extra, adaptam-se melhor e têm níveis de bem-estar mais elevados.” Há ainda a postura das chefias, se mostram preocupação com os seus funcionários em teletrabalho, se o fazem de forma periódica, se são ou não flexíveis com prazos.

O trabalho é central na vida das pessoas. A questão é saber se são as pessoas que estão ao serviço do mercado ou se é o mercado que está ao serviço das pessoas. Onde fica a centralidade do valor humano?

Teresa Carla Oliveira, professora na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, doutorada em Psicologia Organizacional, começa por aqui, ou seja, se há respeito, se há dignidade, porque o trabalho tem uma dimensão social. “Quando não existe uma relação de respeito mútuo, quando há uma relação de exploração, qualquer questão é um problema”, alerta.

“Não temos uma cultura facilitadora do teletrabalho. Isso leva tempo”, garante Teresa Carla Oliveira, professora universitária
(Foto: DR)

O teletrabalho pode então tornar-se o melhor ou o pior dos mundos. Há fronteiras ou há barreiras? Há controlo ou há confiança mútua? Há diálogos ou há silêncios? Motivação ou desmotivação? “Num contexto saudável, o teletrabalho é uma ferramenta fabulosa. Mas não temos uma cultura facilitadora de teletrabalho, isso leva tempo.”

O apoio de quem manda é essencial. Há ganhos e há perdas. E é preciso saber o que é importante. É a tarefa? É o projeto? Que significado tem aquele trabalho? Quem decide? Quando e como? “O teletrabalho requer uma auto-organização e uma aprendizagem muito grandes.” É necessário estabelecer equilíbrios sem barreiras.

E tudo permanecerá na mesma?

Maria José Chambel não tem certezas sobre se o teletrabalho veio para ficar. “As mudanças são muito difíceis de ser implementadas, provavelmente voltará tudo à estaca zero.” Na sua opinião, este método laboral poderia resultar. “A maioria das pessoas considera que o teletrabalho foi uma aprendizagem e gostava de, no futuro, ter um modelo misto. É algo que pode ser fantástico, é um modelo muito rentável e muito confortável, ganha-se o tempo que se perde nos transportes, a andar de um lado para o outro.”

As chefias habituaram-se, fizeram um esforço inicial para adaptar equipas, assegurar material, tentam perceber o que corre bem e o que corre mal. “É uma oportunidade que temos, no futuro, de mudar o nosso modo de trabalhar, de apostar em maneiras mais flexíveis, mais focadas em objetivos do que propriamente onde as pessoas estão e em que horários estão a fazer as suas tarefas.”

Teresa Espassandim usa a metáfora do elástico para falar de resiliência. Um elástico estica e tem capacidade de voltar à posição inicial. Ou não. “Quase tudo permanecerá na mesma”, comenta. Depois do desconfinamento, em seu entender, tudo voltará ao que era no contexto laboral. Um modelo misto é uma possibilidade.

“Para muitas pessoas, o teletrabalho é uma experiência positiva, têm mais tempo para si e sabem canalizá-lo para um equilíbrio entre a vida profissional e pessoal”, refere. Outros não gostam. “Mais horas de trabalho, o trabalho estende-se durante o dia sem fronteiras, toda a hora parece hora de trabalho e para estar disponível.”

“O teletrabalho é inevitável, veio para ficar”, acredita Teresa Carla Oliveira. “A implementação desta prática é que põe muitas dúvidas e é preciso repensá-las.” Dar-lhe um enquadramento formal, respeitar capacidades, reunir condições, não ignorar o bem-estar do trabalhador. Esta é uma discussão multidisciplinar, económica, social, política, biomédica, em que todos os argumentos são válidos e em que a reorganização do território e um novo conceito de cidade fazem sentido. “Nem tudo vai ser tão bom como é, nem tão mau como estava.” Seja como for, há uma questão que é preciso perceber e encaixar pelos empresários, pelos trabalhadores, pelas famílias: “O teletrabalho não é telecasa”. Ponto final.

Manual de sobrevivência

(Recomendações da Ordem dos Psicólogos)

  1. Definir um espaço de trabalho e respeitar as regras de ergonomia.
  2. Reconhecer as dificuldades de adaptação. Saber que é natural sentir stresse, cansaço, frustração, ansiedade.
  3. Aceitar e compreender que a produtividade à distância não é igual à produtividade em regime presencial. As condições de trabalho não são as mesmas.
  4. Minimizar distrações e interrupções. Estabelecer horários para trabalho, descanso e lazer.
  5. Estabelecer e cumprir objetivos e limites.
  6. Reorganizar tarefas de forma a compatibilizar as exigências da vida profissional, pessoal, familiar.
  7. Respeitar os momentos de pausa e a necessidade de autocuidado. Relaxar para recarregar baterias.
  8. Valorizar o trabalho em equipa, definir um plano de comunicação com os colegas, partilhar experiências e dificuldades.
  9. Evitar o isolamento, reforçar o contacto com os colegas, combinar um café ou um almoço à distância.
  10. Valorizar o próprio trabalho. Todos os dias, durante alguns minutos, refletir sobre a natureza do trabalho e o quão importante é o contributo para si e para a empresa.
  11. Movimentar-se, fazer pequenas pausas, levantar-se da cadeira, andar um pouco, ter uma alimentação saudável, respeitar os horários das refeições.