Quando a tecnologia é um abuso, o corpo é que paga

(Foto: Freepik)

Depois das dores musculares, as rugas. A fatura a pagar pelo uso crescente dos computadores, tablets e telemóveis é cada vez mais pesada. Perceba se tem um “tech neck”.

A imagem é já indissociável da realidade da vida moderna. Em casa, no trabalho, nos transportes públicos, nas filas de espera, em plena rua, mesmo enquanto caminhamos. Os olhos invariavelmente fixos no ecrã do computador, do tablet, do telemóvel, consoante o protagonista e a ocasião. E o pescoço inevitavelmente arqueado, oprimido, tensionado. A questão é de tal forma premente que a tendência já merece uma designação própria: “tech neck” – traduzindo à letra, o pescoço da tecnologia. A fórmula pode ainda derivar para o “text neck”, que será qualquer coisa como o pescoço de texto. Em suma, a nomenclatura “tech neck” refere-se, portanto, ao ato de contrair os músculos durante o uso dos aparelhos tecnológicos. Com as várias consequências que daí podem advir. Desde a rigidez e a dor no pescoço e nos ombros, frequentemente mencionadas (também lá iremos), ao menos expectável – até ver, menos estudado também – aparecimento crescente de rugas.

A tendência tem vindo a ser mais abordada a nível internacional. E mesmo que ainda sejam precisos mais anos para que tenhamos um conhecimento científico consolidado sobre o assunto, vai sendo percecionada pela experiência empírica de dermatologistas e cirurgiões estéticos. João Maia e Silva, coordenador de dermatologia no Hospital CUF Descobertas, em Lisboa, refere isso mesmo. A explicação é relativamente simples. “A posição [que adotamos quando estamos a usar os aparelhos já mencionados] faz com que vamos formando pregas nessa zona e as pregas precipitam o aparecimento de rugas”, elucida o especialista.

“No fundo, é o mesmo que acontece com as chamadas rugas de expressão.” Mas João Maia e Silva frisa que devemos ser cautelosos quando nos referimos ao envelhecimento precoce da pele. “Essas rugas traduzem-se em sinais de envelhecimento que aparecem precocemente. Mas é o envelhecimento cronológico da pele que está acelerado? Não, não é.” O dermatologista esclarece ainda que tem cada vez mais pacientes a mencionar o aparecimento dessas pregas, mas, na maior parte dos casos, os doentes não as associam às novas tecnologias. “No entanto, não deixa de ser lógico.”

Já Sofia Santareno, cirurgiã plástica do Board Europeu, lembra três fatores que devem ser tidos em conta quando avaliamos o envelhecimento do pescoço. Por um lado, a qualidade da pele, para a qual contribuem de sobremaneira a exposição solar e o facto de nos esquecermos com frequência de reforçar os cuidados do rosto nessa zona.

Pele manchada e “papada”

Paralelamente, “também pode haver exposição à luz LED dos monitores”, sendo que, sublinha a especialista, a maior parte dos protetores solares não bloqueiam esse espetro de onda.

Podem, assim, gerar-se alterações cromáticas significativas. “Temos tido vários casos de pessoas com a pele manchada nessa zona, sobretudo nesta altura de confinamento e teletrabalho”, adianta a diretora clínica da The Dr. Pure Clinic, que aconselha a utilização de um protetor que também seja eficaz no combate à radiação luminosa.

Mas voltando aos três fatores que permitem aferir o envelhecimento do pescoço. O segundo tem a ver com a posição. “Quando estamos em situação de tensão, sabemos que há um conjunto de músculos do rosto que tem tendência a fazer mais contração, usamos muito o platisma e vão-se gerando as bandas platismais. Uma das características estéticas de um pescoço envelhecido são essas bandas platismais, que são uma espécie de cordões verticais acentuados.”

De referir ainda a laxidez dos tecidos, provocada pelo facto de termos a cabeça mais inclinada para a frente. Os ligamentos vão, portanto, ficando mais laxos (frouxos), podendo gerar-se a chamada “papada”. Por tudo isto, Sofia Santareno não hesita em estabelecer uma relação causal: “Ainda estamos a falar de um espaço muito curto de tempo para avaliar com exatidão o impacto das novas tecnologias neste processo. Mas, do ponto de vista dos mecanismos que conhecemos, faz sentido que haja um impacto direto”.

E soluções, há? Há, pois. A primeira (e mais óbvia) das quais passa, claro, por nos impormos uma certa disciplina no uso das tecnologias, bem como a prática de pausas mais frequentes quando não temos alternativa ao seu uso durante períodos prolongados. Mas também há os cremes (os que contêm retinoides, vitamina C e ácido glicólico podem ser particularmente úteis), as sessões de radiofrequência e laser (que podem ajudar a estimular o colagénio da pele), a injeção de toxina botulínica – o chamado botox – ou ácido hialurónico ou mesmo tratamentos com base em plaquetas. Sofia Santareno aponta outras hipóteses. Desde os peelings aos liftings, passando pelo recurso aos ultrassons micro focalizados ou ao microneedling e às cirurgias mais específicas, para os casos em que o problema for mais acentuado.

Essas malditas dores

As rugas até podem passar despercebidas ao comum dos mortais, já o mesmo não se pode dizer das dores cervicais provocadas pelas horas infinitas que dedicamos aos aparelhos tecnológicos. Miguel Loureiro, ortopedista no Hospital Lusíadas Porto, constata este facto: “Os doentes queixam-se cada vez mais da cervicalgia axial”. Ou seja, uma dor no pescoço e nos músculos paraespinhais do trapézio, que, em regra, se manifesta com particular intensidade mais para o fim do dia. “Como se usa cada vez mais o computador e o telemóvel, a cabeça e o pescoço acabam por estar constantemente em flexão, pelo que os pacientes se ressentem mais do que se ressentiam antes.”

Se as contraturas a são relativamente simples de resolver – seja com alongamentos, massagens ou, se necessário, relaxantes musculares -, o problema adensa-se quando esta postura se traduz em problemas nos discos, espécie de amortecedores situados entre as vértebras. “Este é um problema mais sério. Estes discos podem romper e formar a chamada hérnia discal ou pode gerar-se uma discopatia generativa.” Miguel Loureiro sublinha que vai acontecendo de forma natural com a idade.

Mas a questão é: estarão as novas tecnologias a acelerar este processo? “Acredito que sim. E já há artigos que apontam para isso.” Ora, porque o uso das novas tecnologias não parece estar a abrandar, e porque a tendência será para os problemas se acentuarem, o ortopedista deixa alguns conselhos que podem ser úteis.

“De hora a hora, devemos parar uns minutos. Fazer exercício, claro, porque o exercício oxigena os tecidos, melhora o metabolismo e torna-nos mais resistentes à dor e às contraturas. O pilates e a natação podem ajudar muito. Ou mesmo um ciclo de RPG [Reeducação Postural Global]”, sugere, dando o exemplo pessoal: “Recorro diariamente a um espaldar, para esticar as costas e o pescoço. E a uma bola medicinal. Mas quem não tiver acesso a estes recursos também pode consultar os muitos vídeos de alongamentos e exercícios de reforço e estabilização do ‘core’ que existem no YouTube.”