Quando a solução está na casa dos pais

Dois meses depois de montar casa no Porto, Inês Castro foi obrigada a fazer a mala e regressar a Santo Tirso (Foto: Artur Machado/Global Imagens)

Estudantes e trabalhadores portugueses viviam vidas independentes quando o novo coronavírus encerrou as universidades e os empregos, privando-os dos rendimentos. Em plena pandemia, muitos jovens regressaram a casa dos pais por tempo indeterminado e procuram readaptar-se a novas regras de convivência familiar.

À semelhança de muitos jovens portugueses, a “freelancer” Inês Castro, de 27 anos, dedica os dias a desbravar o mundo profissional com vista numa oportunidade em design que lhe assegure a independência financeira. A máscara não esconde o olhar pensativo enquanto, tranquilamente sentada na companhia da gata Salsicha, recorda os dias que viveu em Guimarães antes de encontrar um T1 “minúsculo” no centro do Porto, por 380 euros mensais. “Em janeiro, arranjei um contrato a termo incerto e comecei a procurar casa mais perto do trabalho.” A esperança era de que a nova condição laboral trouxesse mais segurança. Nem dois meses passaram e, devido à pandemia que assolou o país, Inês viu-se forçada a abdicar do seu próprio espaço para regressar a casa dos pais, em Santo Tirso, onde já não vivia há cerca de três anos. “Foi logo naquelas semanas de pânico, quando toda a gente começou a trabalhar em casa”, lembra, contando que também esteve em teletrabalho. “No final do mês, eu e uma colega fomos informadas de que não voltaríamos à empresa.” Sem justificações e sem passar pelo lay-off. “Falaram da hipótese de me voltarem a chamar, e ainda me pediram um projeto a recibos verdes, nada mais.”

Perplexa e sem subsídio de desemprego, a designer não encontrou outra solução que não fosse a de voltar à casa de partida. “Agora, começo a perceber que tudo vai ficar melhor, mas, na altura, pensava que ia ser difícil ser contratada por alguém”, assume. “Preferi avisar logo o senhorio que ia sair, porque tinha assinado contrato de um ano.” Quanto mais tarde o fizesse, maior seria o valor a pagar, uma vez que já incluía o mês de abril e a caução. Trabalhos pontuais ainda os há, mas não seriam suficientes para cobrir as despesas. Atualmente, Inês vive com o irmão, de 23 anos, e com os pais, que também estiveram em teletrabalho durante um mês. “Claro que é complicado, até porque decidi sair de casa devido a dramas familiares”, confessa, dizendo, todavia, que isso ainda não se revelou um problema, ao contrário do isolamento. “Estou a meia hora de carro do Porto, mas é sempre uma vila”, remata.

“Estes casos surgem por várias situações, sendo que uma delas é o despedimento ilegal”, declara João Cerejeira, professor da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho. A ACT (Autoridade para as Condições de Trabalho) é a entidade com competência para efetuar a fiscalização. “O sistema de justiça português fez muito mal em manter os dois meses de chamadas férias judiciais”, critica o docente. “Vamos assistir a casos de insolvência e de despedimentos muito repentinos. E o facto de não haver uma solução legal imediata acaba por ser um incentivo às empresas.” Isto origina a perda de rendimentos dos trabalhadores dispensados, bem como do subsídio de desemprego ou de formas de apoio semelhantes. “Os jovens neste contexto são dos grupos mais afetados”, destaca João Cerejeira. “Os contratos precários fazem com que, numa situação de crise, esses trabalhadores sejam os primeiros a perder o posto de trabalho” e, consequentemente, o arrendamento da casa ou do quarto devido à “capacidade de poupança muito reduzida”. Nesse sentido, “o desenlace possível é regressar a casa dos pais”, conclui, comparando a atual situação à crise financeira de 2011 a 2013.

Desde janeiro de 2019 que Lizandra Cavalcante e João Graça usufruíam de uma vida a dois no Porto, em casa e em contexto profissional, ambos na área da restauração. Exatamente um ano depois, a covid-19 forçou o casal a separar-se. “Recebemos uma carta a dizer que a empresa onde trabalhávamos tinha declarado insolvência”, lamenta a jovem, de 26 anos. Já não recebiam desde fevereiro, o que os levou a atrasar o pagamento da renda. “Agora, não íamos de todo ter rendimentos”, constata. O facto foi imediatamente comunicado ao senhorio. “Deu-nos até ao final de abril para sair da casa e acordámos pagar o que faltava [cerca de 1 200 euros] em quatro meses.”

Fazendo-se acompanhar das gatas Jelly e Belly, Lizandra mudou-se novamente para casa dos pais, também no Porto, onde vive igualmente o irmão, de 19 anos. João regressou a Paredes. A distância não os intimidou. Pelo contrário, levaram a situação “com bastante calma”. “Não vale a pena estar a stressar por uma coisa que não podemos mudar”, diz, positiva.

“A ideia é voltarmos a viver juntos, mas cada coisa a seu tempo.” O mais certo é que a restauração tenha deixado “de ser uma hipótese”. “Já nem consigo entrar em restaurantes”, revela, entre risos. Fotografia e pintura são as suas verdadeiras ambições. No caso de João, pretende explorar o sonho de se tornar compositor. Mas não pensa o mesmo sobre voltar ao Porto. “Quando ele estudava na universidade, fazia muitas viagens de comboio e isso tornou-se bastante cansativo”, conta a namorada. Quando “juntaram os trapinhos” e começaram a trabalhar na cidade Invicta, o casal ponderou a possibilidade de arrendar um apartamento em Paredes.

João Cerejeira frisa que, a partir do momento em que regressa a casa dos pais, a pessoa “passa a estar dependente de um sítio para residir”, condicionando, dessa forma, a procura de um novo emprego. “O conjunto de ofertas a que se pode candidatar é relativamente limitado devido à localização”, sublinha o docente da Universidade do Minho. O que pode resultar no prolongamento da situação.

Lizandra encontra-se em casa dos pais desde maio, mas ressalva que a família não se cruza frequentemente. “Eles saem de manhã para trabalhar e só voltam à noite.” Ainda assim, não esconde que pode haver alguns desentendimentos com a mãe. “Tem as suas manias de limpeza, os seus vícios, e adora impor isso em mim”, assinala. “Claro que ao fim do dia está tudo bem, mas detesto que me acorde para limpar a casa, o que acontece quase todos os dias.” Ligeiramente angustiada, traz à memória a rotina e os hábitos que definiu autonomamente durante o tempo em que viveu sem os pais. “Eu faço as coisas quando me apetece e a minha mãe é muito rígida.” Sobre o facto de não ter rendimentos, Lizandra assume que tem de pedir “um euro ou dois por dia só para ir tomar um café”. “É horrível. Num dia, tens uma vida própria, o teu salário no fim do mês. Mas de repente perdes tudo e tens de pedir aos teus pais.” Enquanto aguarda a validação do subsídio de desemprego, reconhece que sente “alguma vergonha” por estar nessa situação.

Fazendo-se acompanhar das gatas Jelly e Belly, Lizandra Cavalcanti despediu-se do namorado, que seguiu para Paredes, e mudou-se novamente para casa dos pais, no Porto
(Foto: Ana Fonseca/Global Imagens)

“Sair de casa dos pais é efetivamente uma espécie de independência que adquirimos”, explica Cécile Domingues, psicoterapeuta na Clínica da Mente. “O regresso por causa da covid-19 e por questões financeiras que lhe estão associadas pode provocar problemas emocionais”, como a frustração, a ansiedade e a desmotivação. Fruto de um “retorno ao passado, de, como os jovens costumam dizer, dar um passo atrás”, bem como por causa do contexto familiar. “No fundo, já não se trata de crianças, mas de adultos com valores, crenças e uma personalidade própria.”

Para tornar a convivência familiar um pouco mais suportável, “as partes têm de fazer um esforço” ao nível da tolerância. “Os pais têm de ter consciência de que já não têm os filhos de cinco anos à frente”, mas os filhos devem compreender que “as gerações também são diferentes e que, por vezes, os pais têm opiniões distintas”.

Foi em Viseu, na casa da mãe, que os irmãos Eduardo e Bárbara Marques encontraram abrigo após sofrerem os efeitos socioeconómicos da pandemia. Ele, com 24 anos, passa os dias no quarto a dar aulas de português a cidadãos estrangeiros. Ela, com 26, intitula-se de “menina da mamã” e dedica o tempo livre a cozinhar para a família. Estavam os dois em cidades diferentes quando tudo aconteceu. Hoje, juntos, refletem sobre novas possibilidades para “quando tudo regressar ao normal”.

Eduardo tinha acabado de regressar de um programa de Erasmus em Madrid para concluir o mestrado em Design Industrial, que lhe iria tornar o currículo “um bocadinho mais coeso”. O Porto foi a cidade eleita para realizar o estágio, mas, para tal, precisava de alojamento. As poupanças e a ajuda dos pais permitiram o arrendamento de um quarto a um valor acessível. Viver sozinho não o assustava, sendo que já o fazia desde 2014, só que o coronavírus parou o Mundo e a empresa onde estagiava fechou portas. “Inicialmente, fiquei com a expectativa de que fosse abrir um mês depois e que tudo acabaria por voltar ao normal”, afirma. “Após algum tempo, tornou-se claro que isso não ia acontecer” e, por consequência, sentiu que o mestrado tinha deixado de fazer sentido. Decidiu “parar, voltar a Viseu, para não gastar dinheiro com as despesas da casa”, e abraçou a possibilidade de dar aulas através da internet.

“Pensei que seria algo temporário. De facto, não faz parte dos meus planos ficar muito tempo”, vinca. “Custa-me um bocado acreditar que vou ficar aqui, por exemplo, nos próximos dois ou três anos.” O designer assume que o pior é a perda parcial de independência, por ter de responder a um determinado conjunto de regras. “A minha mãe, a minha família, todos temos de colaborar, ao passo que viver com pessoas desconhecidas é um pouco diferente.” Olhando para o futuro, Eduardo imagina-se a viver numa cidade diferente, mas, por enquanto, analisa o mercado de trabalho. “Também estou a aproveitar para investir um bocadinho em mim e para explorar outras coisas.”

“Não tem de haver ansiedade em demasia, nem tem de haver ilusão em demasia”, defende Cécile Domingues, analisando a abordagem dos jovens ao novo estilo de vida. “Deve-se tentar levar um dia de cada vez e delinear objetivos a curto prazo, para gerir as emoções da melhor forma.” A psicoterapeuta conclui que “tudo depende das ligações com os familiares”. Quando os filhos são muito ligados aos pais, o regresso a casa pode ser bastante positivo. “Recebem o amor, o apoio e o carinho, sabendo que também são capazes de os ajudar”, ou seja, existe “uma troca de ligações emocionais muito importante”. Serve de exemplo a irmã de Eduardo, que encontrou no regresso uma fonte de apoio, depois de ter sido dispensada de uma empresa em Lisboa, cidade onde já vivia há oito anos. “Foi complicado o processo e perceber que fiquei sem chão, mas, por outro lado, soube-me bem ter um bom sítio para onde voltar”, confessa Bárbara, cujo primeiro pensamento foi não querer passar pela pandemia em Lisboa, com pessoas que não conhecia, mas antes com os familiares e com o namorado, também de Viseu.

Durante algum tempo, confidenciou inocentemente com as colegas que não as poderiam despedir. Quando a má nova foi comunicada, ficaram “sem saber o que fazer”. “Não é que não conseguisse pagar a casa durante mais algum tempo”, admite, referindo-se ao dinheiro que recebeu após o término do contrato e ao subsídio de desemprego. “A questão era mesmo ficar lá durante este tempo todo a pagar”, sem garantias de um novo emprego posteriormente. Ao fim e ao cabo, assume que se sente bem e que até “precisava desta pausa”.

Os irmãos Eduardo e Bárbara Marques voltaram a viver juntos, em Viseu, na casa da mãe. Ele estava no Porto, após Erasmus em Madrid; ela deixou Lisboa, depois de oito anos a residir na capital
(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

Em casa, as tarefas são divididas. “Eu sou a cozinheira”, ri-se. Os pais de Eduardo e Bárbara, divorciados, trabalham como técnicos de saúde no hospital de Viseu, o que desencadeia na filha mais velha a necessidade de procurar retribuir. “É uma sensação agridoce para a minha mãe”, comenta a jovem, absorvida em pensamentos. “Ter os filhos em casa seguros, mas sempre a trabalhar com receio de trazer alguma coisa”, de os poder infetar. Assim sendo, quem entra em casa deve cumprir a devida desinfeção no “espaço quarentena” elaborado pela família e retirar os sapatos antes de avançar.

Formada em Design de Produto, Bárbara não deseja voltar a mudar de cidade sem uma oportunidade mais sólida. “Algumas pessoas mudam de casa tranquilamente e são muito práticas, mas eu não. Só o facto de ter de passar por isso – tirar as minhas coisas de oito anos de Lisboa -, é muito doloroso.” Quando questionada sobre como imagina o futuro, responde que deverá ser na área para a qual estudou. “Nem que seja para experimentar e perceber que afinal não é o que eu quero.”

“Regra geral, o mercado de trabalho português reage mais lentamente do que a evolução da produção”, observa João Cerejeira. “Mesmo que a economia comece a recuperar nos próximos trimestres, o reflexo no emprego demorará algum tempo”, nomeadamente nas áreas do turismo. Espera-se alguma alteração apenas a partir do próximo ano.

Cécile Domingues considera que as dificuldades vão continuar a surgir, em termos profissionais e pessoais, havendo uma repetição da fase conturbada que o país viveu em tempos. Se antigamente as pessoas saíam de casa dos pais por volta dos 20 anos, hoje são cada vez mais escassas as condições para que tal aconteça. “Infelizmente, esta pandemia não vai desaparecer daqui a um mês e temos de aprender a viver com esta nova realidade”, completa a psicoterapeuta.