Pensamentos sombrios, quem os não tem?

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Fantasiar um crime ou ficar contente com desgraças alheias é tão terrível quanto banal. Os pensamentos que não controlamos nem sempre são bonitos, mas não nos definem.

“O cão do vizinho é amoroso, mas quando ele ladra de noite tenho ganas de o matar.” “Consolei a minha amiga que sofreu um novo desgosto amoroso mas, honestamente, ela merece: já era tempo de aprender a escolher melhor os homens.” “Adoro os meus filhos. Apesar disso, em alguns momentos, acho que mais valia não os ter tido.” “Adoro a minha vida. No entanto, ocasionalmente, penso como seria dar uma guinada e atirar o carro ponte abaixo.” “A mulher que acabou com o meu casamento há cinco anos está doente e, quando soube, não pude deixar de sentir uma alegria interior com isso.”

Estes são desabafos deixados online, em redes sociais e fóruns, que mostram que debaixo da superfície, do que exteriorizamos e do que dizemos em voz alta, há momentos em que, aparentemente, somos pessoas bastante piores, mais primitivas e menos saudáveis mentalmente do que gostaríamos. Ou, pelo menos, é isso que muitos ficam a matutar cada vez que estas ou outras ideias pouco ortodoxas lhes atravessam o espírito. Às frases acima reproduzidas segue-se sempre esta (ou idêntica) pergunta: “Será que sou uma pessoa horrível por ter pensado isto?”. Apesar de cada pessoa se sentir uma carta fora do baralho quando tem este tipo de pensamentos, como veremos eles são maçadoramente banais.

Quase todos temos um lado sombrio e pensamentos perversos ocasionais. Na década de 1980, o psicólogo Eric Klinger, da Universidade de Minnesota (EUA), dispôs-se a estudar os pensamentos espontâneos, pedindo a voluntários que registassem aquilo em que estavam a meditar em alguns momentos ao longo da semana. Nas 16 horas diárias em que estavam acordados, as pessoas tiveram, em média, cerca de 500 pensamentos não intencionais ou intrusivos, com a duração média de 14 segundos cada. Grande parte estavam relacionados só com os aborrecimentos do dia a dia, mas 18% eram considerados maus ou inaceitáveis pelas próprias pessoas e 13% como absolutamente perversos ou chocantes, incluindo reflexões sobre matar.

Por muito trauma que isso cause, não é uma situação invulgar nem patológica. “A ansiedade que podem causar faz com que tentemos nem os verbalizar, mas todos temos mais ou menos frequentemente este tipo de pensamentos. É perfeitamente normal. E situações que causem ansiedade são propícias a que eles se acentuem e invadam mais a nossa consciência”, explica o psiquiatra Cláudio Moraes Sarmento. Embora nos sintamos culpados ou pouco dignos com algumas das ideias que involuntariamente nos atravessam o espírito, o médico frisa que quase sempre dizem pouco sobre nós. “São totalmente independentes do que acreditamos ou desejamos.”

Das palavras aos atos?

Controlar as nossas ações é mais fácil do que controlar os nossos pensamentos. Fugir deles é o mesmo que tentar fugir da própria sombra. “Mas mesmo sabendo que são ideias irracionais, podem causar imenso sofrimento. E quando se tornam repetitivos e intrusivos, causando desconforto, poderemos estar perante patologia da ansiedade”, prossegue Cláudio Moraes Sarmento.

No consultório deste especialista não é invulgar que apareçam jovens mães que receiam fazer mal ao filho recém-nascido pelo facto de essa ideia lhes ter atravessado alguma vez o espírito. “Dado o desconforto da situação, a vergonha e receio de poderem agir é frequente o pedido de ajuda”, conta. “Nessa altura é possível desmistificar as ideias e, excluindo tratar-se de um surto psicótico, podemos tranquilizá-las explicando que existe uma distância muito grande entre o pensar e o agir, e que os pensamentos estão dentro da segurança do processo mental. Frequentemente, trata-se de uma patologia ansiosa ou depressiva que pode e deve ser tratada e tem muito boa resposta ao tratamento.”

Cláudio Morais Sarmento diz que “num indivíduo saudável, com uma estrutura de personalidade neurótica [a mais comum e considerada a mais equilibrada], é residual o risco de agir. A própria estrutura de personalidade e os mecanismos de defesa inerentes previnem em grande medida essa passagem ao ato. Claro que existem limites e psicopatas. Mas são franjas do espetro do nosso funcionamento”.

De resto, se ter pensamentos sobre matar alguém fosse crime, 91% dos homens e 84% das mulheres seriam culpados, alega David Buss, professor de Psicologia na Universidade do Texas (EUA), no livro “The Murderer Next Door” (sem edição em português). Por muito chocantes que pareçam os números, eles fazem todo o sentido do ponto de vista da psicologia evolutiva, defende o autor: os nossos antepassados matavam para sobreviver e para resolver problemas; por isso, não é surpreendente que essa predisposição tenha chegado aos nossos dias.

Mas o que o psicólogo evolutivo também sublinha é que este tipo de conceito, por norma, longe de nos levar à ação, costuma distanciar-nos dela: a contemplação desse cenário, ainda que breve e não intencional, põe em campo o lado racional e afasta-nos dos instintos primitivos e selvagens que ainda nos habitam.

O nosso rasto de dados online não mente

Apesar de alguns estudos com dados tradicionais baseados em inquéritos levantarem um pouco a ponta do véu acerca das ideias pouco ortodoxas que temos, qualquer cientista social está familiarizado com uma barreira que levantam: como alcançar conclusões fiáveis sobre o que as pessoas realmente pensam quando a única fonte de informação é o que elas contam?

Uma das limitações das entrevistas ou inquéritos é o chamado viés da desejabilidade social: as pessoas tendem a responder às perguntas de forma a serem vistas favoravelmente pelos outros, deixando de lado tudo o que lhes pareça inadequado, mesmo quando as respostas são anónimas. Ou seja, as pessoas mentem. Mas o que não mente é o gigante rasto de dados que deixam atrás de si cada vez que se sentam sozinhas em frente a um computador. Por isso, estes dados começam a ser usados para inferir os nossos verdadeiros interesses.

Por exemplo: quem continua a considerar que as fantasias sexuais das mulheres são predominantemente heterossexuais e tradicionalmente românticas terá de repensar os seus conceitos. As estatísticas de 2018 do site Pornhub mostram que a pesquisa de vídeos mais feita pelas mulheres no site para adultos é “lésbicas” e que no top dez dos vídeos mais procurados pelo público feminino estão as expressões “trio” e “gangbang”.

Sozinhos em frente a um computador, contamos à caixa de pesquisa do Google as coisas que nem às paredes confessamos. Que o diga Seth Stephens-Davidowitz, ex-cientista de dados da Google que passou quatro anos a analisar estes dados anónimos e escreveu o livro “Everybody Lies: Big Data, New Data and What the Internet Can Tell Us About Who We Really Are” (sem edição em português). Os dados que compilou, relativos aos EUA, contêm informações surpreendentes que nenhum inquérito por questionário teria provavelmente obtido. Por exemplo, que o pensamento de que o marido pode ser gay parece ser frequente entre as mulheres. Considerando todas as pesquisas no Google iniciadas pela frase “O meu marido…”, é 10% mais provável que o que se segue seja “é gay?” do que “engana-me?”, que surge em segundo lugar na tabela. “É gay?” é ainda oito vezes mais comum do que “é alcoólico?” e dez vezes mais comum do que “está deprimido?”.

O que Stephens-Davidowitz também pôde observar foi que os pensamentos de ódio e o racismo andam de mãos dadas e que a violência gera pensamentos violentos. Na noite de 2 de dezembro de 2015, minutos depois de os media terem revelado os nomes de Rizwan Farook e Tashfeen Malik como os responsáveis pelo assassinato de 14 pessoas num escritório na Califórnia, a principal pesquisa com a palavra “muçulmanos” naquele estado foi “matar muçulmanos”. Nesta altura a frase foi tão frequente no motor de busca como “sintomas de enxaqueca” ou “receita de Martini”.

A alegria da dor

Desgraça alheia: eis outra coisa em que generalidade dos seres humanos medita. Porque adora. Num mundo perfeito todos sentem alegria com as alegrias dos outros e tristeza com os infortúnios dos semelhantes. Mas silenciosamente, porque os códigos sociais e morais não o aprovam, quase toda a gente já sentiu um prazer mesquinho com a desgraça alheia.

Os alemães têm uma palavra para isso: “schadenfreude”, que numa tradução à letra significa “alegria do mal”. O professor de Psicologia Richard H. Smith, da Universidade do Kentucky, nos EUA, já publicou cinco livros sobre o assunto e tem uma teoria muito simples para explicar o fenómeno: segundo o investigador, esta alegria do mal pode estar associada à punição de injustiças ou a uma questão de estatuto e comparação social.

O primeiro caso acontece quando há uma sensação de regozijo por alguém conhecido ser considerado culpado de um crime ou ser apanhado a fazer uma asneira. “Nesses casos a alegria é caracterizada por ser menos ‘pessoal’ e objetiva, estando associada ao sentimento de um erro que é corrigido”, descodifica o investigador à NM. Entre estes casos estão as condenações de banqueiros por corrupção ou de atores por assédio sexual. E nesses casos é fácil perceber a sensação de alegria: ela está associada à reposição da justiça possível.

Mas como explicar a “alegria do mal” que nos leva a ficar secretamente entusiasmados com os fracassos dos que nos são próximos? Smith defende que esse sentimento é motivado pela comparação social. São casos clássicos disso uma certa satisfação interior quando um colega de escritório é chamado à pedra por ter cometido um erro. “Os amigos, colegas e conhecidos, sendo as pessoas do nosso círculo, são aquelas com que competimos mais diretamente, já que os resultados alcançados por eles são os que têm mais impacto em nós. Assim, na medida em que o infortúnio de qualquer pessoa nos beneficie, sentiremos sempre algum prazer. Apesar disso, quando gostamos genuinamente da pessoa, isso esbate este sentimento, misturando-o com a simpatia que ela nos merece e com a culpa pelo que sentimos”, considera o psicólogo e investigador.

Lutar com esta culpa pode ser penoso, mas Smith sustenta que devemos ter presente que estes sentimentos, por vezes contraditórios, são naturais e compreensíveis. Mas também que isso só significa que temos de nutrir a nossa capacidade de empatia. “Temos de nos colocar no lugar do outro, perguntar a nós mesmos como nos sentiríamos se fosse connosco. Como seria o Mundo se encorajássemos esses sentimentos em nós e os passássemos para os nossos filhos? Não muito bonito. Por isso, sem se culpar, trabalhe para ser um ponto de luz e não uma fonte de escuridão”, conclui o investigador.

A ideia dos dois “eus” em conflito é antiga. Há uma parábola nativo-americana que reza assim: um velho índio Cherokee está a ensinar ao neto coisas sobre a vida. “Está a acontecer uma luta dentro de mim”, diz ele ao miúdo. “É uma luta terrível entre dois lobos. Um é mau – é raiva, inveja, ganância, arrogância, mentira, superioridade e ego.” E continua: “O outro é bom – é amor, humildade, bondade, empatia, generosidade, verdade. E a mesma luta está a acontecer dentro de ti e dentro de todas as outras pessoas”. O neto pergunta ao avô: “Qual dos lobos vencerá?” O velho Cherokee responde: “Aquele que alimentares”.