Rui Cardoso Martins

O meu novo pai

(Ilustração: João Vasco Correia)

Escrevo ao lado da cama do meu pai Leonel, que deve morrer em breve. É muito provável que aconteça antes do texto ser publicado. Cheguei ontem da costa alentejana com as minhas irmãs, os três no mesmo carro, e trouxemos-lhe beijinhos dos oito netos. Genros, noras, irmãs e irmãos, sobrinhos, primos, amigos, todos gostam dele. Teve uma vida de trabalho, amor pela mulher Lurdinhas e pela família, respeito pela palavra (da língua e, para usar uma ideia antiga, da honra). Ainda há dias o professor de latim, grego e português me corrigiu a máxima latina – alma do Direito, base destas crónicas – que eu escrevera com gralha: Pacta sunt servanda. Os pactos são para cumprir. A minha primeira recordação na vida é: Sines no Verão e o mar, do cimo das escadas da praia, brilha no azul impossível pré-refinarias. É o dia 27 de Julho de 1970 porque o meu pai diz:

– Morreu o Salazar.

– Era teu amigo, papá?

Não, não era. 50 anos. Outra recordação foi nos primeiros multibancos, anos 80. Pediu cinco contos, a máquina deu-lhe uma resma com seis notas de mil. Entrámos na agência e esperei que o meu pai devolvesse em mão o dinheiro a mais. Ainda vive, espero eu, um velho bancário com esta história para contar. Apesar do que se esperava – ontem nem abria os olhos – o meu pai sorriu-nos e tentou falar. Apertou-me os dedos como se pegasse num papel. Os seus amados latinos viram nesta doença um caranguejo que avança de lado e para trás, picoteando com as patinhas persistentes.

Estou a lembrar-me da sorte que tenho. Tive muita sorte com a minha mãe e o meu pai. A minha mãe viu-me aflito a falar em público e gritou:

– “Dêem-lhe uma caneta!”

E agora lembro-me do jovem que há um mês escutei num tribunal de Lisboa. Muitas cadeiras tapadas com fita plástica. As limitações da covid-19 não me deixaram entrar. Mas ele falava com tal desespero que escutei do corredor. Do pai dele: alguém que era – ou se transformara – numa pessoa destruidora. Reproduzo partes do que ouvi, o coração entristecido pela tristeza dele. Este rapaz tinha uma irmã que morreu nova e em extremo sofrimento. Depois:

– Com este facto, a minha família, que ainda estava bem… houve um bloqueio, houve uma divisão. A minha mãe decidiu: “Já eduquei, já tratei da minha filha e do meu filho e agora vou à minha vida”. Quis voltar a estudar. O meu pai era um bocado contra. Entrou na faculdade e começou a fazer o curso de História de Arte. Com a morte da minha irmã, eu tento unir a família (…). Tinha que unir os meus pais, mas já não era possível, já havia ali um buraco. (…) Ele não falava, ele bloqueava, e eu perguntava “pai, o que é que se passa, o que é que tu tens?, porque não é possível nós estamos à mesa e tu estares a chorar!” E ele: “desculpem, isto não é nada convosco!” “Então é com quem?! (…) Eu sou teu filho, não sou um mendigo!”. O que eu sentia sempre do meu pai é que ele não tinha confiança para falar comigo.

Não dava dinheiro suficiente para a mãe viver, tomou posse das contas como se fosse tudo dele. A mãe nem tinha computador para estudar. Começaram as agressões verbais. A mãe andava sempre com a mochila, pronta para fugir. Dormia na salinha, com taças à volta, a chave debaixo da almofada. Se ele entrasse, tropeçava. Às vezes, a mãe dormia no quarto do filho, porque ele protegia-a.

Um dia, a mãe telefonou para o emprego:

– O teu pai bateu-me, fui agredida.

– Chama já a polícia, eu vou para casa. Quando cheguei a casa, vi a minha mãe negra.

A mãe saiu de casa. O filho vivia metade do tempo com cada um. Um dia voltou a casa e tinham mudado a fechadura. Confiscou-lhe o correio. Chantageou-o: “Se estás do meu lado, dou-te a chave”.

O filho foi buscar as coisas, a sua cama. Levou amigos que conheciam o pai há dez anos. Este abriu a porta em roupão.

– O que é que queres?

– Vim buscar as minhas coisas.

– “Isto aqui, nada é teu.” Bateu-me a porta na cara e os meus amigos ficaram: “Mas este é o teu pai?”.

– É. É o meu novo pai.

Quando saiu do depoimento, o jovem não sabia onde parar. E eu não podia dizer-lhe nada. Tive muita sorte com a minha mãe e com o meu pai, e agora vão juntar-se, pai Leonel.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)