Nem nós sabemos
A crónica “Nem sabes”, aqui publicada a 14 de Junho, falava de um polícia vítima de violência doméstica por parte da mulher. Um amigo dele lembrava mensagens que lera no telemóvel:
– Meritíssima, diziam és isto, és um merda… nem para… serves.
– Nem para quê? Pode dizer.
– Com todo o respeito pelos meritíssimos juízes, “nem para foder serves”.
Esta é uma página nova do caso, passada nos dias seguintes no Campus de Justiça de Lisboa. É a outra cara do caso terrível (e também banal) de um homem operado a cancro da próstata, impotente, mas que – disse a ex-mulher, e repetiu a sua advogada – apenas sofreu a resposta desesperada aos males que ele mesmo gerou. A advogada leu, nas alegações, uma extensa lista de queixas anteriores da mulher, sucessivamente silenciadas pela hierarquia da polícia. E também por ela: se o então marido levasse castigo disciplinar, veria a reforma cortada e, assim, o filho não poderia estudar na universidade. A advogada começou:
– Foram mais de 30 anos de casamento a ser vítima de violência doméstica.
E leu um texto enviado pela mulher aos superiores da PSP.
– Este mail é um grito de ajuda, de desespero, de uma mulher que é vítima de violência doméstica.
O filho de ambos “cresceu a ouvir o pai a insultar-me de tudo, só não me chamava de santa por dá cá esta palha, eram gritos e insultos, coisas a voar e que acabavam partidas no chão, muitas vezes agressões físicas. Tive de aprender a defender-me e, se não fosse assim, hoje ainda estava a apanhar dos dois quando calhasse. Há 30 anos atrás não era assim, eu encolhia-me e ele agredia, chegou a encostar-me a arma à cabeça por duas vezes, deu-me bofetadas, arrastava-me pelos cabelos. Ainda hoje a forma que ele tem de me agredir, além dos insultos, é agarrar-me pelos cabelos para não deixar marca. Já o tenho agredido para me defender e ele começou a ganhar algum receio, mas depois alega que sou eu que o agrido. Fiz queixa na PSP há dois anos, mas esse processo acabou arquivado, porque eu, burra, acabei por levantar a queixa, mas vou reabri-lo. Ele é responsável por duas depressões minhas e por influenciar desrespeito por parte do meu filho. Tenho vivido momentos de inferno e ninguém faz uma pequena ideia e dou comigo a pensar ‘como é que tenho aguentado isto há 30 anos para cá?’”.
A advogada continuou: quando o filho estava para nascer, ela a entrar em trabalho de parto, ele disse que chamasse os bombeiros, se precisasse. Quando teve o tumor na próstata e teve de ser operado rapidamente, “no dia em que tivemos de nos deslocar ao hospital, mais uma vez me pediu perdão por tudo o que me tinha feito e eu respondi que naquele momento não pensasse nisso”. Finalmente, disse a advogada, “sem querer tornar-me aqui maçadora”, diz aqui que “quando tomei esta decisão foi a pensar que me tinha de separar e essa é a posição que vou tomar, e tenho medo que no meio destas discussões haja uma tragédia”.
Não houve. Separaram-se. A mulher foi condenada a dois anos de prisão, com a pena suspensa e a proibição de voltar a contactar o ex-marido. Terá também de lhe pagar 500 euros. Antes de saber a sentença, a mulher e a juíza conversaram. A mulher tremia.
– Quer dizer mais alguma coisa em sua defesa?
– Eu obviamente lamento. Foi num contexto também da depressão nervosa e por uma vivência familiar muito complicada. Daí ter tentado retaliar e tentar… no fundo era a minha revolta contra a situação que estava a viver, sem saída.
– Mas estas mensagens são de um teor muito intenso. Tão mau ou pior do que aquelas situações que a senhora descreve como vítima… É que eu tenho aqui mensagens…! “Esterco, velhaco, cínico, ordinário, reles, estúpido, cabrão, merdoso, cobarde, malformado e mentiroso, parvalhão de merda, enforca-te de uma vez, ordinário da pior espécie, cancro da nossa vida, és um banana com ele, mas perigoso, és um triste, destrambelhado de merda, este gajo saiu doido como tu, sem paciência para nada.” Quer dizer, a senhora sente-se ofendida com as mensagens de que foi vítima, mas depois escreve “tens sangue de cobra venenosa, és um triste sem tomates para nada”. Ao escrever estas coisas, está a fazer tanto ou mais do que…!
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)