Mulheres de armas: a missão de quem fica

A tenente Célia Carvalho é mulher de um militar e psicóloga do Núcleo de Apoio e Intervenção Psicológica do Centro de Psicologia Aplicada do Exército (Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

As famílias dos militares destacados para ações no estrangeiro enfrentam também elas uma operação difícil. Apesar das saudades e de viverem o dia a dia com o coração nas mãos.

Mulheres de armas” (Military Wives, no original) é inspirado na história do primeiro coro de mulheres de militares, no Reino Unido, criado em 2010, pouco depois de os maridos terem partido para o Afeganistão. O filme, dirigido por Peter Cattaneo – com Kristin Scott Thomas, Sharon Horgan e Emma Lowndes nos principais papéis -, estreia dia 9 de julho em Portugal e reflete sobre as dificuldades que enfrentam as famílias dos militares destacados para comissões no estrangeiro: a ansiedade da partida, a disrupção nos hábitos familiares, as dificuldades dos filhos, o medo de receber más notícias. Mas reflete também sobre como o apoio mútuo e um objetivo comum – neste caso um grupo coral – conduz essas mulheres à resiliência. Hoje, a instituição “Military Wives Choirs” agrega uma rede de 75 coros e mais de 2 300 mulheres, tanto no Reino Unido como noutros países, que as aproximam da comunidade militar através do canto. O seu mote é “Stronger Together” (Juntas somos mais fortes).

Ana Moura, mulher do tenente-coronel Rui Moura, comandante da 5.ª Força Nacional Portuguesa destacada para a República Centro-Africana que regressou a Portugal em setembro passado, depois de sete meses em missão, conhece bem essa realidade. A sobrecarga de trabalho durante a ausência do marido não lhe deixou tempo para se envolver em novas atividades, mas garante que o apoio e a união de quem está na mesma situação são preciosos. No seu caso, tem um grupo alargado de oito amigas, todas mulheres de militares, que se conhecem há 20 anos. “Já todas passámos pela experiência de ficar sozinhas e, por isso, sempre que o marido de uma de nós parte em missão, há uma atenção maior por parte de todas as outras. Ligamos mais vezes e juntamo-nos com mais frequência para conviver. Todas sabemos o que se sente. Falamos sobre as dificuldades práticas, sobre as saudades e tentamos animar quem precisa o mais possível”, conta.

Em Portugal, não existe nenhum coro de mulheres de militares e o estabelecimento de redes formais de apoio é mais difícil, por razões contextuais. No Reino Unido – como nos Estados Unidos e noutros países -, as famílias vivem numa base ou num bairro militar, conhecem-se todas e convivem de perto. A realidade portuguesa não é essa. “Os militares estão colocados num quartel, mas não são necessariamente dessa zona. Temos militares de Braga a desempenhar funções em Lisboa. As famílias estão muito dispersas geograficamente, o que torna mais difícil que se criem grupos de ajuda ou apoio mútuo formais”, explica a tenente Célia Carvalho, psicóloga militar do Núcleo de Apoio e Intervenção Psicológica do Centro de Psicologia Aplicada do Exército (NAIP-CPAE).

Militar com destacamento frequente para missões internacionais, mulher de um militar e psicóloga, Célia Carvalho consegue ter uma visão muito abrangente das várias vertentes desse desafio. O marido também já fez uma missão de seis meses fora do país, pelo que a psicóloga sabe o que é estar do lado de cá. Em março, Célia esteve no Afeganistão durante um mês, a fazer a avaliação do estado emocional e psicológico da 4.ª Força Nacional Portuguesa no país, e foi o marido a ficar nessa situação. “A componente de preocupação não é tão grande. Posso dizer-lhe que caiu um rocket perto de mim sem que ele ache isso fora do normal – é a diferença entre termos alguém em casa que conhece esta realidade ou ter um civil. Mas claro que, durante os períodos em que estou fora, ele tem de fazer ajustes nas rotinas diárias e arranjar formas de preencher o tempo que normalmente era ocupado comigo. Assim como eu também já tive de o fazer.”

A partida e a ausência

O tenente-coronel Pedro Garcia Lopes, chefe do NAIP-CPAE, costuma dizer que há duas missões: a de quem vai e a de quem fica. “Mas enquanto os militares têm um período de preparação de seis meses para a missão – com toda a componente física e técnica, mas também a componente psicológica -, a família do militar não recebe essa formação”, lembra. Em Portugal não há um programa presencial de apoio às famílias dos militares, mas, através do Programa de Promoção da Resiliência da Família Militar, os psicólogos desse gabinete tentam passar informação essencial, seja através do site, seja pedindo aos militares que partilhem com a família o que aprendem na própria formação. Além disso, o NAIP-CPAE procura estar atento para intervir junto dos familiares no caso de ser detetada alguma instabilidade quando estão a fazer a avaliação psicológica do militar. Todas as famílias ficam com o número de contacto de uma linha de apoio 24 horas por dia e podem ligar em caso de necessidade.

O tenente-coronel Pedro Garcia Lopes, chefe do NAIP-CPAE, não tem dúvidas: “Os familiares que mais sofrem são as mães, as mulheres – sobretudo se não têm uma boa rede de apoio – e os filhos”
(Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)

“Os familiares que mais sofrem são as mães, as mulheres – sobretudo se não têm uma boa rede de apoio – e os filhos”, especifica o responsável. Os telefonemas que chegam são, por norma, relacionados com a inadaptação das mulheres à ausência do militar. Mesmo que continuem a ter contacto através das tecnologias, a ausência física causa um impacto grande na família. “As dificuldades vão desde as coisas mais pragmáticas, como o apoio com os filhos e as rotinas do dia a dia, até à parte mais emocional, como as saudades e o quase luto que fazem dessa partida”, acrescenta. A partir desse momento, feito o pedido de ajuda, os psicólogos da unidade entram em campo com uma intervenção clínica, preferencialmente presencial, que ajude à adaptação da família. “Por vezes também damos resposta a situações de incidentes críticos, como a morte ou a doença de um familiar próximo ou amigo. Nessa ocasião, a família telefona para saber como deve dar a notícia e como deve gerir a situação.”

“O que custa mais são as sextas-feiras à noite. Há um vazio que se sente quando se chega a casa e fecha a porta”, diz Ana Moura, mulher do tenente-coronel Rui Moura. Quando o marido está fora, depois de terminada a semana de trabalho e de escola das filhas – com cinco e 11 anos – a frase ‘Hoje é sexta-feira!”, antigamente dita em tom de entusiasmo e alívio, passa a ter uma nota de pesar e de tristeza. A alegria só regressa dois dias depois, quando acorda e pode dizer “felizmente, hoje é segunda-feira”. Estar ocupada é uma forma de não pensar na distância.

Não foi a primeira vez que Ana passou pela ausência do marido. Mas confessa que, como a missão anterior já tinha sido há oito anos, estava esquecida. “É mesmo muito complicado. No ano passado, na altura em que soube que o meu marido ia, até no trabalho chorava.” As dificuldades da ausência vão além das saudades e da preocupação: há uma sobrecarga logística. “Somos um casal e há divisão de tarefas, mas, quando ele se vai embora, eu sou a mãe, sou o pai, sou eu para tudo. Moro ao pé da minha família e amigos, o que é bom, há uma rede de apoio. E no princípio precisamos, sentimo-nos muito perdidas e desorganizadas.”

Os desafios no regresso

Ana e as filhas tinham cada uma a sua agenda onde iam riscando os dias que passavam, cada traço a aproximá-las mais do dia do reencontro. “Nos últimos 15 dias, parece que o tempo não passa.” Mas o dia 12 de setembro acabou por chegar. O primeiro sinal do fim da espera aconteceu na aproximação do gigante avião no horizonte. No hangar de Figo Maduro, as famílias aguardavam. “É linda e emocionante a chegada. Poder estar ali com as miúdas e finalmente matar as saudades de sete meses com abraços e beijinhos. Porque não há videochamada que consiga atenuar o afastamento físico”, recorda Ana Moura, emocionada.

No entanto, os desafios podem não terminar com o regresso. O entusiasmo é tão grande e as emoções tão positivas que pode haver excessos. “O militar está com a autoestima muito elevada, tem um sentimento de invulnerabilidade, tem mais capacidade económica, muita vontade de gozar a vida. E isso, tudo junto, pode aumentar o risco de comportamentos excessivos, pouco ponderados e o aumento do risco de acidentes”, refere o tenente-coronel Pedro Garcia Lopes.

Ana Moura, mulher do tenente-coronel Rui Moura, tem um grupo alargado de oito amigas, todas mulheres de militares, que se conhecem há 20 anos
(Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)

Depois, há a readaptação de todos, das questões mais práticas às mais emocionais. Ana Moura assegura que, no seu caso, retomar as rotinas enquanto casal, depois do regresso do marido, decorreu com toda a normalidade. Mas nem sempre é assim. Depois da fase de “lua de mel” – nos primeiros dias ou semanas após o regresso -, podem surgir dificuldades. “Durante seis meses os militares habituam-se a uma rotina sem as responsabilidades – nomeadamente domésticas – que habitualmente assumem em casa e, quando regressam, há muitas vezes necessidade de renegociação dos papéis, o que pode levar a alguns conflitos e dificuldades”, salienta a psicóloga Célia Carvalho.

De resto, também na parte profissional tem de haver uma adaptação: na missão, as funções são predominantemente militares; quando voltam aos quartéis, o trabalho passa a ser novamente mais burocrático e menos operacional. “Esse choque de realidade entre ‘o que eu fazia na missão’ e ‘o que eu faço agora’ pode levar a insatisfação e a frustração”, defende a psicóloga. Se tudo correr bem, poucos meses depois, a reintegração está concluída com sucesso. Até à próxima missão. Dos militares e das famílias.