Um homem ultrajado e vilipendiado no exercício da profissão, num palco que é suposto ser de festa, numa casa que bem conhece, diz basta. Olha em desespero o banco de suplentes e pede para sair. Demite-se de fazer o que mais gosta. Não assim, quando lhe atacam a dignidade de forma vil. Nas bancadas, um coro de símios. Insultos a rodos. A expressão que tem no rosto diz tudo da cólera que o corrói. Vai sair. Colegas e treinador tentam impedi-lo. Ele não quer saber. Desvia-se, gesticula, incapaz de ceder, todo indignação. Parece ele contra o mundo. Só parece. O mundo está em peso do lado dele.
Marega segue irredutível. Já nada daquilo é sobre um jogo de futebol entre Vitória de Guimarães e F. C. Porto. É sobre humanidade. É sobre não condescender face ao intolerável. De braços erguidos, polegares para baixo primeiro, dedos impróprios erguidos depois, Marega some no túnel de Guimarães. Nada daquilo sumiria. O caso depressa domina a atualidade mediática. Ganha contornos internacionais. É uma bola de neve. Pela primeira vez em Portugal, um futebolista abandona o campo por insultos racistas. É um soco no estômago. Escreve-se uma página de vergonha no futebol português.
As reações de repúdio não se fazem esperar. Do desporto à política. Dos órgãos institucionais aos clubes. Do primeiro-ministro ao presidente da República. Os vários braços da justiça entram prontamente em ação. A Autoridade para a Prevenção e Combate à Violência no Desporto anuncia a instauração de um processo contraordenacional. A Procuradoria-Geral da República avança com processo-crime. A PSP põe em campo uma “task-force” para analisar as imagens de videovigilância e identificar culpados. A justiça desportiva também entra em cena. O Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol abre inquérito ao caso. São dias particularmente tensos num desporto que, não raras vezes, se tem feito campo de batalha. A vários níveis.
Marega, entretanto, volta ao assunto. Fala em humilhação. Diz que se sentiu uma merda. Põe um país inteiro (e não só) a falar de racismo. Agita consciências. Merece louvores vindos de todas as esferas da sociedade. Gabam-lhe a coragem de um murro na mesa que pode mudar o paradigma. “Este ato do Marega é revolucionário, cria uma rutura em relação a tudo o que já existiu”, resume Nuno Domingos, investigador de Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e autor do livro “Futebol e colonialismo”.
Racismo generalizado? Sim e não
Até àquele momento histórico, em que o avançado maliano decidiu virar costas ao jogo, o cenário não era tão diferente de outros vistos em recintos desportivos de norte a sul. E não só num passado recente. Pedro Almeida, sociólogo que dedicou uma tese de doutoramento ao assunto (“Futebol, raça e nação em Portugal”), testemunhou isso mesmo. “Não é algo de agora. Já nas décadas de 1960 e 1970 os futebolistas se deparavam com comentários como ‘ó preto, vai para a tua terra’. O que me foi transmitido é que, face à ausência de grupos organizados de adeptos e de mediatização, nessa altura os casos iam-se diluindo mais. Mas isto sempre existiu.”
Ao fim de quase dez anos a estudar o fenómeno, o investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra não tem dúvidas de que os próprios atores do futebol tendem, muitas vezes, “a desvalorizar este tipo de manifestações”. “A expressão mais usada é ‘no calor do momento…’. Olham para isso como uma tentativa de desestabilização e não como uma prática racista. Eu defendo o contrário.”
Quer isto dizer que há um racismo generalizado no futebol português? A “Notícias Magazine” colocou a questão (entre outras, relacionadas com o racismo) aos chamados três grandes, bem como aos organismos que tutelam este desporto em Portugal. Benfica e F. C. Porto optaram por não responder – no caso dos azuis e brancos, alegando que não voltariam ao assunto para respeitar a vontade do próprio Marega, que “pretende tranquilidade”.
Para os leões, “não há, de uma forma generalizada, racismo no futebol português”. Ainda que, ressalva fonte oficial do clube de Alvalade, o primeiro passo para que fenómenos como este se generalizem seja a indiferença. Por isso, “é essencial que os clubes assumam, de forma frontal, o seu papel no combate a esta indiferença”.
A Federação Portuguesa de Futebol (FPF) remeteu para o comunicado de repúdio entretanto divulgado. Já a Liga Portugal, organismo que tutela o futebol profissional, entende que “o racismo é um problema social, não do futebol”. A tese é relativamente consensual. Nuno Domingos, sociólogo e antropólogo, refere o futebol como “um laboratório onde se projetam problemas mais amplos da sociedade, como o racismo”. Pedro Almeida fala em “práticas e discursos racistas que estão generalizados no futebol como noutros setores da sociedade portuguesa”.
E até o secretário de Estado do Desporto, João Paulo Rebelo, admite que “há, infelizmente, racismo na sociedade portuguesa” e que o desporto, enquanto fenómeno social, “reflete também esse comportamento”. O governante lembra, contudo, que Portugal “não é um caso isolado” e que episódios como este até acontecem com muito mais frequência em Itália e Inglaterra. Mais ainda quando os populismos e os partidos conotados com a extrema-direita tendem a ganhar força pela Europa fora.
No futebol transalpino, por exemplo, há vários anos que se registam mais de 100 incidentes relacionados com o racismo por ano. Na Premier League, só na última época terão sido perto de 300. Tony Banks, jornalista do Daily Express Sport, conta-nos que “há um grande problema de racismo no futebol inglês”, que é reconhecido por todos.
“Vários clubes têm tomado medidas. O Chelsea e o Manchester City, por exemplo, já em várias ocasiões baniram a entrada de adeptos que tiveram comportamentos racistas. O Tottenham também tem tomado medidas, recorrendo à CCTV [videovigilância]”. Ao todo, nas últimas quatro temporadas, houve quase 400 adeptos ingleses detidos devido a comportamentos racistas.
Em Portugal, a realidade é bem distinta. A recém-criada Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto fez saber que em 2019 se registaram 15 processos contraordenacionais relativos a atos de discriminação racial, dos quais resultaram três interdições de acesso ao recinto desportivo.
Dirigentes com as orelhas a arder
Mas voltemos ao caso Marega. Porque enquadrar o que aconteceu em Guimarães implica ir além de uma análise centrada no racismo que rasga a sociedade portuguesa. O sociólogo Nuno Domingos chama a atenção para isso mesmo. “É impossível separar o que se passou das lógicas conflituais que são naturais ao mundo do futebol. O futebol vai buscar tudo o que é tribal e as pessoas podem tornar-se completamente cegas.”
Para o investigador, o contexto atual do futebol português não ajuda. “É evidente que as rivalidades sempre existiram, mas ao contrário do que se esperaria, que houvesse uma lógica de decrescimento dos conflitos, tem acontecido o contrário.” As declarações do primeiro-ministro no Parlamento, na última terça-feira, na reação ao incidente de Guimarães, apontam no mesmo sentido. “Há algo absolutamente essencial: os dirigentes desportivos têm de ter cuidado na forma como se dirigem aos seus adeptos e apoiantes. Se andamos a acender a paixão, arriscamos atear fogos muito difíceis de controlar”, alertou António Costa.
À tese do chefe do Governo não serão alheias uma série de circunstâncias que têm rodeado o futebol em Portugal. Ataques sistemáticos à arbitragem (tanto mais frequentes, audíveis ou esdrúxulos quanto mais decisivo o momento e pior o resultado), tricas e acusações frequentes entre dirigentes, diretores de comunicação altamente corrosivos nas redes sociais, estratégias de comunicação aparentemente gizadas ao pormenor para unir as massas, em jeito de propaganda, comentadores que fazem dos programas televisivos uma arena sem leis. É um clima de guerrilha quase permanente que, sem surpresa, acaba a “intoxicar” a opinião pública (ou uma boa parte dela).
Ainda que a Liga Portugal não reconheça uma relação de causa-efeito entre o clima de crispação que se vive no futebol português e episódios de ódio como o ocorrido em Guimarães no último fim de semana (“as trocas de palavras entre clubes rivais, que perseguem os mesmos objetivos, sempre aconteceram” e hoje estão apenas “mais mediatizadas”, respondeu esse organismo à NM), a atual conjuntura do futebol português obriga à reflexão. E inspira um magote de críticas. Desde logo aos dirigentes. Porque são vistos como líderes, seguidos e admirados como exemplos e, não raras vezes, protagonistas de discursos inflamados que acabam a fomentar sentimentos indesejáveis.
Um cenário bem distinto do que se passa aqui ao lado, em Espanha, garante Juan Ignacio Gallardo, diretor do jornal Marca. “Já tivemos uma fase assim [de ataques entre clubes e dirigentes], mas superou-se isso. Hoje, se alguém tem esse tipo de comportamento, cai muito mal. Há relações cordiais, de muitíssimo respeito.” O que mudou então? Foram tomadas medidas nesse sentido? “Não. Creio que tem simplesmente a ver com a personalidade dos dirigentes que estão à frente dos clubes atualmente. São pessoas muito bem formadas, grandes gestores”, justifica Juan Ignacio Gallardo. Já no que toca a críticas à arbitragem, o caso é outro. “Todas as semanas há. Ainda mais desde que se adotou o VAR.”
A pensar num futuro com dirigentes idealmente mais construtivos, o Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ) tem em curso o programa “clubes TOP”, que visa justamente capacitar dirigentes desportivos. “Acreditamos que, tal como aconteceu com jogadores e treinadores, hoje reconhecidos internacionalmente, também os dirigentes desportivos, como agentes relevantes que são, se melhor preparados vão contribuir para melhorar o sistema desportivo”.
Nem só os dirigentes merecem críticas. A banalização dos programas televisivos em que comentadores afetos aos três principais clubes se digladiam com berros e discursos incendiários também. Felisbela Lopes, professora e investigadora de jornalismo na Universidade do Minho e autora do estudo “A confraria do comentário do futebol na TV” lembra que, desde a criação do programa “Os Donos da Bola” na SIC, em 1992, esse género de programas se tem multiplicado, sendo que “principalmente nos canais privados, mais reféns das audiências, se insiste muito no formato da polémica”.
“Parece que, quanto maior a polémica e quanto mais inflamado for o discurso, melhor. Há um registo emocional inflamado, de discutir futebol sob o signo do argumento hipermusculado, que pode provocar um comportamento por osmose. Tudo isto se normalizou no campo futebolístico.” Esse registo emocional, defende a especialista em comunicação, estende-se às redes sociais, com os grupos que permitem o contacto em tempo real e ajudam a incendiar os ânimos.
Escalada de violência
Tudo isto ajudará a fomentar um clima de animosidade ente adeptos, que resvala para dentro dos próprios estádios, com os incidentes a tornarem-se mais frequentes. Joaquim Evangelista, presidente do Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol, defende que “a escalada de violência no desporto é evidente”. Socorrendo-se de exemplos como “a invasão de Alcochete, as pressões sobre jogadores, as lutas de claques, a violência verbal de dirigentes ou as agressões a árbitros”, o dirigente sindical fala num “conjunto de comportamentos que nos asfixiam” e que “colocam em causa os valores fundamentais do desporto e do nosso modo de vida em sociedade”.
As explicações não se confinam ao papel dos dirigentes e comentadores. O sociólogo João Nuno Coelho aponta a “falta de cultura desportiva e formação cívica” que, de resto, se faz sentir desde as camadas jovens. Os casos frequentes de pais que vão assistir a jogos dos filhos e insultam tudo e todos mostram isso mesmo. Os comportamentos inflamados acabam também por ser potenciados pelo facto de o futebol ser visto, frequentemente, como um espaço para extravasar emoções. “No calor do jogo, das emoções, toda aquela adrenalina que se cria na bancada acaba por abrir caminho ao descontrolo e aos excessos”, aponta João Nuno Coelho, admitindo que, também por isso, há, por vezes, uma certa sensação de impunidade.
A própria jurisprudência ajuda a legitimá-la. Há meses, ficou célebre uma sentença do Tribunal da Relação de Lisboa, na qual foi decidido não levar a julgamento os envolvidos num processo por crime de injúria e ofensa à honra durante um jogo de futebol. Invocava-se que, apesar de se tratar de “um comportamento revelador de falta de educação e baixeza moral contra as regras da ética desportiva”, esse comportamento era “de alguma forma tolerado nos bastidores da cena futebolística”.
João Paulo Rebelo, secretário de Estado do Desporto, frisa, no entanto, que tais comportamentos não poderão ter lugar nesta esfera da sociedade, tanto mais que são “um contrassenso face aos valores do desporto”. E desconstrói a ideia da impunidade. “As instituições funcionam, o Estado funciona. Estes atos [de violência] não passam impunes.”
O governante lembra ainda as várias medidas que têm sido postas em prática pelo Governo para travar o fenómeno da violência no desporto: as alterações ao regime jurídico do combate à violência, racismo e xenofobia no desporto, que entraram em vigor em setembro; a criação da Autoridade para a Prevenção e Combate à Violência no Desporto, o primeiro “organismo público exclusivamente dedicado a esta matéria”; o lançamento da campanha de violência zero; a criação de um grupo de trabalho multi-institucional, para acelerar a circulação da informação e alterações à lei que venham a revelar-se necessárias.
Certo é que, face ao caso ocorrido no último fim de semana em Guimarães (e a outros casos de violência no desporto), se multiplicam os apelos a uma justiça mais atuante, mais célere, mais eficaz. No caso da justiça desportiva, as limitações ainda há dias foram admitidas pelo próprio presidente do Conselho da Disciplina da FPF. A propósito do caso Marega, José Manuel Meirim alertou para o facto de as punições aos clubes – como a interdição de estádios, tão rara em Portugal – estarem reféns dos regulamentos e da necessidade de provar a responsabilidade do emblema em causa.
Alexandre Miguel Mestre, especialista em Direito do Desporto, aponta três vias possíveis para tornar a justiça desportiva mais eficaz. Por um lado, a clarificação das normas já existentes, para lhes retirar subjetividade (“numa das normas fala-se de comportamento incorreto, mas o que é incorreto para uns não é para outros”, exemplifica).
Por outro, a possibilidade de aumentar o valor das multas pecuniárias. Ou ainda mudar a lógica das punições, passando de multas pecuniárias para sanções do ponto de vista desportivo. “Quando se sanciona desportivamente, vai-se ao coração dos adeptos.” O antigo secretário de Estado do Desporto ressalva, ainda assim, que discorda do princípio de “responsabilidade objetiva” consagrado na justiça desportiva portuguesa (que permite que os clubes sejam punidos por comportamentos dos adeptos), defendendo antes um reforço das punições dos próprios adeptos.
Questionada pela “Notícias Magazine” sobre a possibilidade de mudar os regulamentos para agravar punições, fonte oficial da Liga Portugal admitiu que o organismo “não exclui a possibilidade de reunir os clubes”, para perceber se há viabilidade para isso.
Por sua vez, o poder político pede que a própria sociedade se mobilize na luta contra a violência, o racismo e a xenofobia.
Porque, como realça Joaquim Evangelista, “não podemos compactuar com isto, não pode valer tudo”. “E se houver mais casos como o de Guimarães, os jogadores têm de parar todos, dizer que não estão disponíveis para compactuar com isto.” Para que Marega, o homem ultrajado e vilipendiado no exercício da profissão que teve a coragem de dizer basta, não seja só um herói solitário numa guerra sem fim à vista.
Se quer saber mais sobre a vida e a carreira de Marega, leia o perfil que a Notícias Magazine fez sobre o jogador.