Entrar de férias com o trabalho organizado

Há determinados traços de personalidade que podem dificultar a adoção de métodos e estratégias rigorosos

Mercado mais exigente, medo de perder o lugar e mesmo teletrabalho podem complicar. Mas há salvação. Dicas para gozar o descanso sem levar o computador atrás.

A piscina ali à beira, a praia ao longe, os chinelos nos pés, o sol a abrir a fuga prometida… e o portátil sempre à mão para ultimar os trabalhos pendentes. Diana Gonçalves, que trabalha na área da avaliação imobiliária, está habituada ao cenário. “Ando sempre com muito trabalho. No dia a dia ainda vou conseguindo controlar mas depois chegam as férias e é o descalabro. Acabo sempre a ir de férias com o computador atrás.” O hábito está enraizado. Tanto que ainda antes de os portáteis se banalizarem a antecâmara do descanso já era o cabo dos trabalhos. “Tinha sempre de fazer noitadas. No último dia ficava a trabalhar até às quatro, cinco da manhã, para conseguir acabar tudo.”

Do passado longínquo para o passado recente, recorda uns dias tirados para percorrer Portugal de norte a sul que se tornaram um autêntico caos. “Como coincidiu com uma entrega grande, aproveitava cada bocadinho que tinha para pegar no portátil. Foi um stresse.” Em jeito de autoanálise, Diana deslinda vários motivos para o velho hábito. “Acho que o meu maior problema é não saber dizer que não. Pelo menos uma semana antes de ir de férias devia parar de aceitar trabalho. Mas não consigo, vejo em tudo uma oportunidade.”

A par com a dificuldade em dizer que não está a resistência a delegar trabalho. Pelo meio, também alguma falta de organização. Embora garanta que, regra geral, acaba sempre por cumprir os prazos. Mesmo que isso implique uma verdadeira saga de corridas ao sprint. “De alguma forma gosto de viver neste stresse. Trabalho melhor sob pressão. Se tiver uma semana com pouco trabalho, o que é raro, começo a engonhar e acabo por fazer as coisas sob pressão de qualquer forma.”

O problema é que, no meio da azáfama, as férias sabem pouco… a férias. O desvario está longe de ser residual. Quem nunca viveu uma semana verdadeiramente aterradora antes de gozar o merecido descanso? Ou deu por si de computador no colo em plena viagem? Salomé Sousa, psicóloga especialista na área do trabalho e das organizações, avança com uma possível justificação para a tendência. “O facto de o trabalho ser cada vez mais exigente e competitivo é um bom ponto de partida.” Um eventual medo de perder o lugar, sobretudo num contexto em que os trabalhos para a vida vão sendo reduzidos a mera utopia, também.

Mas isso não deve servir de desculpa para descurar um bem essencial como as férias. A especialista remete para o conceito que vem enunciado no próprio Código do Trabalho. “O direito a férias deve ser exercido de modo a proporcionar ao trabalhador a recuperação física e psíquica, condições de disponibilidade pessoal, integração na vida familiar e participação social e cultural”, pode ler-se no artigo 237.º. “Por esta definição conseguimos perceber a importância do efetivo gozo de férias”, realça a especialista. “Só que muitas vezes a empresa não tem esta importância interiorizada. Ou, por vezes, o próprio trabalhador.”

Colegas em “cc” e manhãs bloqueadas

Carolina Santos, “business partner” da Adecco, empresa de soluções de recursos humanos, é o oposto disso. Organização, planeamento e gestão atempada do trabalho são características que se orgulha de ter. “Acho que isto já está um bocadinho enraizado. Porque tanto na licenciatura como no mestrado sempre me habituei a estudar e a trabalhar ao mesmo tempo. Fui desde cedo obrigada a ser organizada e a ter método de trabalho.”
O ingresso na Adecco só a veio ajudar a refinar as estratégias para ter tudo sob controlo. “Aqui somos quase obrigados a ter determinados métodos.”

Carolina, que falou connosco dias antes de ir a banhos, explica parte das estratégias adotadas. “Uma das coisas que fiz foi bloquear duas manhãs para me fechar numa sala e deixar prontas todas as tarefas que tinham de ficar organizadas antes de eu ir. Como trabalhamos num open space estamos constantemente a ser interrompidos. Faz parte do nosso trabalho mas não conseguimos produzir da mesma maneira. Assim tiro um tempo só para isso. Aviso as chefias e as colegas que vou fechar o email e desligar o chat. E adianto o trabalho que tenho pendente.”

Mas a preparação para as férias arranca ainda antes. Desde logo, com a divisão das várias tarefas que tem em mãos por outras colegas. “Cada uma fica com um assunto em particular, para não sobrecarregar ninguém.” Feita essa seleção, Carolina começa a colocar as colegas que ficarão responsáveis por determinados assuntos em “Cc” nos emails que vai enviando. Isto nas duas semanas anteriores à partida.

“Assim já ficam a par do que está a ser tratado.” Para garantir que tudo corre como previsto, sem mal-entendidos nem falhas, na derradeira semana ainda se reúne pessoalmente com cada uma delas. E há outros métodos. Por exemplo, a partilha de todos os documentos oficiais, que eventualmente possam ser necessários, através do Google Drive, “para que depois não tenhamos de andar a ligar umas às outras a perguntar onde está isto ou aquilo”.

No último dia, Carolina ainda envia emails – que vai preparando ao longo da semana – com uma súmula de tudo o que foi falado pessoalmente ou em reunião, e com uma lista de contactos que possam ser necessários na sua ausência. “Só para ficar formalizado.” Além da estratégia básica da resposta automática aos emails com a mensagem “out of office”, onde constam igualmente os contactos das pessoas responsáveis por determinados assuntos.

Estratégias simples que, assegura Carolina, têm resultado na perfeição. “Desde que estou com esta equipa já tive dois períodos de férias, em janeiro e em junho, e em nenhum dos dois as colegas tiveram de me contactar. Normalmente falávamos só à sexta-feira, mas mais por curiosidade minha, que queria saber se estava a correr tudo bem.”

Lideranças partilhadas e teletrabalho

No caso de Carolina o método já lhe estava inculcado no ADN. Mas, destaca a psicóloga Salomé Sousa, a cultura organizacional pode ser decisiva. “Sabemos que, dentro das empresas, há determinadas características que podem ser indicadoras de sucesso a este nível. Sabemos, por exemplo, que organizações que assumem lideranças partilhadas tendem a alimentar um maior sentimento de pertença e um trabalho colaborativo. Tudo isto se pode revelar muito importante no planeamento pré-férias.”

Ainda assim, há determinados traços de personalidade que podem dificultar a adoção de métodos e estratégias rigorosos. E que por sua vez podem pesar na altura de deixar tudo arrumado antes de ir de férias. Ou de não deixar. “Há pelo menos três tipos de perfil individual que podem dificultar esta boa gestão”, elenca Salomé.

“Um prende-se com a dificuldade em delegar tarefas, que regra geral está associada a pessoas mais competitivas e com maior dificuldade em confiar. Outro tem a ver com o medo de perder o trabalho. Normalmente falamos de indivíduos muito inseguros, que têm muito receio que o substituto seja mais competente do que eles e que acabam por ser mais submissos.” A terceira característica destacada pela especialista é “o estigma”. Ou seja, “o facto de as pessoas acharem que isto de ir de férias é para preguiçosos. O que obviamente não é”.

“Se veio confundir os limites da esfera pessoal e profissional? É claro que não tenho evidência científica disso, mas parece-me muito óbvio que sim. Atrevo-me a dizer que a curto e médio prazo vamos ver os efeitos deste impacto. Até porque não estamos a falar de um teletrabalho convencional. Isto fez com que todas as esferas ficassem baralhadas e isso é certamente um desafio ainda maior em toda esta gestão.”